Crônica: Querida Emily...
Rubem Alves (1933-2014)

Seu nome não é esse. Emily foi o nome que escolhi, porque não sabia se você iria gostar que eu revelasse seu nome verdadeiro. De Emily Dickinson (1830-86) poetisa americana que, sem sair de casa iluminou o mundo com uma beleza delicada. Veja só esse poeminha: “ Prá se fazer uma campina / é preciso um trevo e uma abelha. / Um trevo, uma abelha / e fantasia. / Mas, em se faltando abelhas / basta a fantasia...” Esse poeminha eu repito sempre. Me faz sorrir. Mas não acredito nele. A fantasia só não basta para se fazer uma campina. É preciso abelhas. Mas a Emily Dickinson, sem saber disso, já sabia: cada poema que ela escrevia era uma abelha que polinizava fantasias– abelhas que continuam voando até hoje.
Contei a sua história. E você não sabe a minha surpresa: começaram a chegar abelhas, muitas abelhas, – todas zumbindo, todas trazendo mel e querendo fazer florir uma campina.
Você, assim, foi razão de alegria para mim. Você sabe, às vezes a gente vai ficando triste, triste, vendo só coisa ruim, cobras e escorpiões, bichos peçonhentos, parece que as campinas estão se transformando em desertos impróprios para a vida, a alegria e a esperança vão se apagando e a gente já não sabe mais sorrir. Aí, então, quando falei sobre você – e o que falei foi só fantasia, pois é isso que os poetas são, plantadores de fantasias –vieram as abelhas. As abelhas sentem, de longe, o cheiro bom das fantasias! E aprendi, então, que as abelhas não faltam nunca. Elas só ficam escondidas. Mas basta que uma fantasia perfumada floresça para que elas venham zumbindo... Assim, antes da alegria da campina verde, eu tive a alegria do vôo dourado das abelhas.
Me dei conta de que o mundo está cheio de pessoas bonitas que querem distribuir alegria. A maioria eu nem conheço. Mas não importa. O fato é que, sem se conhecerem, elas formam uma comunidade invisível de solidariedade. E é isso que dá sentido à vida.
É comum que as pessoas, mergulhadas no sem-sentido das atividades e dos vazios do cotidiano se perguntem: “Qual é o sentido de minha vida? Qual é a razão para viver? Qual é a minha missão? Que caminho seguir?” Lembro-me da resposta que o bruxo D. Juan deu ao seu discípulo Carlos, quando ele lhe fez esta pergunta. D. Juan respondeu: “ Todos os caminhos conduzem ao mesmo fim. Escolhe, portanto, o caminho do amor...” O sentido da vida não está no final. O sentido da vida está no caminho. A vida é como música. A beleza não está na conclusão, está na travessia. O sentido da vida está na realização da solidariedade e da amizade, que vão acontecendo...
Pois foi isso que a fantasia de nome Emily fez: um número sem conta de pessoas foi tocado pela felicidade da solidariedade. Por isso eu lhe digo: “Obrigado. Você fez uma coisa boa sem saber, até mesmo com nome falso...” Pois eu quero lhe dizer que a campina acaba de acontecer. As abelhas entraram no meu escritório trazendo o seu computador. Agora estamos esperando o técnico que vai instalar o modem e os programas de que você vai necessitar para ficar ligada com o mundo.
Eu sempre tive uma certa implicância com essas pessoas que ficam o dia inteiro ligadas à Internet. Existe sempre o perigo de se trocar a vida real pelas imagens virtuais. A vida é muito perigosa. As imagens virtuais, é só desligar o computador para elas desaparecerem. Mas eu comecei a ver as coisas de uma outra forma. Aprendi, por exemplo, que muitos jovens estão aprendendo o prazer da leitura através da Internet. Na escola, leitura é coisa de obrigação, para fazer prova, chata. Na Internet é uma aventura através do espaço, as bibliotecas do mundo à nossa disposição. E nem precisa ser livro inteiro. Há sites que estão cheios de coisas interessantes para serem lidas. Eu mesmo estou preparando minha homepage, e ela estará cheia de pensamentos, estórias e crônicas. E aprendi também que relações significativas podem acontecer através da Internet, se a pessoa tiver paciência de procurar. No cotidiano a gente não pode escolher com quem conversar. Na Internet a gente pode: conversar com pessoas do México, de Portugal, da Noruega, de qualquer parte do mundo. E aí, onde o único meio de contato são as palavras, a gente pode ter acesso direto à alma da pessoa, sem as seduções perturbadoras da visão. Se não houver reverberação, é simples: deletar.
Pois é, Emily: logo logo você vai estar com seu computador e você vai começar a se ligar com o mundo. E como você já me deu licença, vou revelar às abelhas o seu verdadeiro nome e endereço. Joelma Batista da Silva - Rua Rio Pinheiro 25 – Vila Nelly – Itaquaquecetuba – SP – CEP 08599-330 – Telefone (11) 46 45 26 05. Ficamos agora esperando que você nos mande o seu endereço eletrônico, para que todo mundo fique sabendo.
Com o zumbido de muitas abelhas, vai o meu zumbido também.
(a) Rubem Alves * * *
Dirijo-me agora às abelhas que ajudaram a plantar a campina e a todas as abelhas que estão voando por aí: tomei consciência do imenso potencial de bondade que existe invisível e inativo, por não ter formas de se expressar. O potencial existe, como água numa fonte – as pessoas não sabem em que direção fazer correr a água. Me veio a idéia de que, talvez, fosse possível criar, na Internet, um “Armazém de Trocas”. De um lado, as pessoas diriam quais são as necessidades existentes. Do outro, aqueles que têm formas de atender a essa necessidade fariam o que pudessem. E as necessidades não são só de coisas, computadores, geladeiras e cadeiras de roda. Pode ser que uma escola precise de um jardineiro que ensine as crianças a plantar um jardim, ou um asilo precise de um eletricista que conserte a instalação elétrica, ou um cego precise de alguém que lhe leia um livro. Isso foi uma fantasia. Como já disse, eu não concordo com a Emily Dickinson: as fantasias não bastam. As fantasias precisam das abelhas. Acontece que eu não sou nem abelha e nem mamangava para montar esse “Armazém de Trocas”. Mas sei que há abelhas que, juntas, poderão fazê-lo. E poderão contar comigo.