Opinião: A lanterna – Parte 1

Ana Pamplona (de Formiga)

Opinião: A lanterna – Parte 1
(continua na próxima edição)




Meu nome é Sônia. Tenho cinquenta anos. Sou do tipo que gosta de ajudar as pessoas. Cuido, dou conselhos, oriento. Não sou psicóloga nem nada, só amiga mesmo. Adoro ajudar, palpitar, dar conselhos, orientar sobre tudo. O fato é que às vezes, as pessoas ficam inseguras, não conseguem decidir nem julgar e eu sou boa para isso. Chego e já defino as diretrizes. Líder nata. Algumas pessoas até me chamam de controladora. Mas elas não entendem. Minha intenção é sempre ajudar. 

No entanto, ultimamente tenho me sentido sozinha. Sinto que as pessoas estão se afastando de mim. Chego nos lugares, nas rodinhas, tenho a impressão de que alguns se afastam sorrateiramente. Inclusive, meu namoro/casamento de oito anos terminou no mês passado. Juarez rompeu comigo no meio de um ataque de cólera que me deixou perplexa. Tantos anos juntos, construindo um relacionamento saudável, de repente, ele termina tudo. Muito bravo, disse que estava cansado de conviver com uma pessoa tentando controlar a vida dele. “Estou farto por ter uma pessoa determinando sobre a roupa que vou vestir, o jeito que falo, se devo beber ou não, onde devo ou não devo ir etc. Que saco! Você é uma chata! ”. Vomitou todas essas palavras depois que descobri que ele estava tendo um caso e fui tirar satisfação com ele e com a amante. Ao perguntar se ela achava certo ter um caso com um homem comprometido, ela respondeu-me: — Ô dona, ele é comprometido com você, mas eu não! Não lhe devo satisfações. ” Bem assim...

Fiquei desesperada. Depois de muito choro tentei a reconciliação, disse que o perdoaria se largasse a safada da mulher. Tentei fazê-lo entender que sem mim ele não sobreviveria, principalmente, porque sou rica. Mas não surtiu resultado. E para piorar, descobri que essa não foi a primeira traição dele.

A raiva dominava-me. Tentei buscar consolo em viagens e futilidades, sem resultados. Um dia, saí por aí a esmo, para pensar no caso. Uma caminhada solitária em meio à natureza me faria bem, apesar de que, naquele momento, eu não era a melhor companhia para mim. Tardezinha caindo, fui andando, somente me deixando levar pelos meus pés. Escurecia e eu apenas remoía a respeito do momento caótico em que me encontrava e sobre a fragilidade de não ter recursos para prever situações trágicas como a que eu havia passado. Por exemplo, se houvesse uma forma de ler pensamentos, poderíamos nos antecipar a elas e controlar melhor as situações evitando tragédias. Mas haveria alguém que teria esse dom ou que pudesse ensinar? Conhecia videntes e cartomantes, mas ninguém potencialmente leitor de mentes. Caminhava distraída imaginando como seria divertido isso. Teria controle total da vida... Com isso, cheguei a dar risadas e pensar: “venderia minha alma ao diabo para conseguir”. Mas parei assustada ao ouvir as palavras. Não havia apenas pensado, mas dito em voz alta. Olhei em torno, não havia ninguém. Fiquei aliviada, mas tive medo. O lugar era ermo, sinistro. Lembrei-me da cena icônica em que o jagunço Riobaldo, — personagem de João Guimarães Rosa — na famosa encruzilhada chamada “Veredas-Mortas”, desafia o dito-cujo a encará-lo e comprar sua alma em troca de poderes para exterminar o Hermógenes. Bom, mas ali não era a “Veredas-Mortas”, e eu não era o Riobaldo. E muito menos, creio eu, que o diabo não estaria disponível para estas bobagens. Sorri lembrando-me do jagunço e de seu grande conflito entre o bem e o mal na obra “Grande Sertão: Veredas”.

Continuei andando. Uma leve preocupação me aborrecia, uma sensação de que havia uma presença me seguindo. Olhava para trás e para os lados constantemente, procurando olhos a me espreitarem. Daí a pouco tropecei em algo. Olhei para o chão, era uma lanterna. Curiosa, peguei-a. Prateada, bastante compacta, cabia na minha mão. Acionei o pino que a acendia várias vezes. Uma lanterninha fraca e bem comum, nada demais, a não ser pelo fato de que não tinha bateria alguma alimentando-a. Resolvi levá-la. Achei, era minha. Coloquei-a no bolso da calça e fiz o caminho de volta.

Chegando em casa, Luiz, o síndico do prédio, estava no elevador. Um tanto contrariado, segurou a porta para que eu pudesse entrar. Agradeci. Cumprimentamo-nos secamente, como sempre. Não nos dávamos bem, devido às demandas do condomínio. Eu o considerava um péssimo síndico, um incompetente. Enquanto subíamos, permaneci distraída observando a misteriosa lanterna, imaginando de onde viria a energia para o seu funcionamento. Liguei-a e sem que eu quisesse, a luz projetou-se iluminando o rosto do homem. Levantei a cabeça, já pronta a pedir desculpas pelo inconveniente, mas fiquei boquiaberta: o elevador havia parado e Luiz estava feito uma estátua, não mexia absolutamente nada. A cena estava congelada. Estalei os dedos na frente dos olhos dele, chamando-o pelo nome: nenhuma reação. Seria um tipo de desmaio, mas com a pessoa estando de pé? De repente, vi nitidamente palavras e frases se formando em volta da cabeça dele. Diziam: “...essa chata, de novo! Até calada, incomoda. Tem tantas certezas e soluções para tudo, acha que é dona do mundo. Dá palpite em tudo sem ser chamada e sempre está certa, nunca ninguém tem razão. Vontade de parar o elevador e jogar essa mocreia para fora...” Dei um pulo para trás! Assustadíssima com a violência não verbal do síndico, apenas “escrita” em sua mente, tentei parar o elevador e foi quando desliguei a lanterna involuntariamente. Da mesma forma que congelou, a cena descongelou e Luiz começou a se mexer como se nada tivesse acontecido...