Opinião: Crônica da indignação: quando o Estado trai seus velhos
Luiz Gonzaga Fenelon Negrinho (de Passos/MG)

Num país que exige do cidadão cada centavo em impostos, cada regra previdenciária, cada assinatura em papel timbrado, é escandaloso ver o próprio Estado falhar justamente onde mais deveria ser exemplar: no respeito aos direitos fundamentais.
O rombo bilionário no INSS – estimado em R$ 6,3 bilhões entre 2019 e 2024 – não é um número seco de planilha. É a fotografia de uma tragédia moral: aposentados e pensionistas, muitos analfabetos digitais, foram vítimas de descontos indevidos, forjados por convênios espúrios com associações obscuras. Entidades fantasmas prometeram seguros, vantagens, serviços – e entregaram apenas engano, perda e desrespeito. Tudo sob a indiferença cúmplice de quem deveria fiscalizar.
Não se rouba apenas o dinheiro – rouba-se a paz, a dignidade e os últimos anos de vida de quem já deu tudo de si.
Enquanto isso, o Estado, tão ligeiro para cobrar, é moroso para reparar. Apela, empurra com a barriga, posterga decisões, recorre até o fim. Muitos morrem antes de ver o direito reconhecido. A Justiça, lenta, burocrática e emperrada, transforma a esperança em silêncio – ou em morte. A Constituição proclama que nenhuma lesão a direito pode escapar do crivo do Judiciário. Mas e quando o Judiciário, travado por formalismos e manipulado por interesses, transforma o direito em utopia?
A clássica máxima do Direito – dar a cada um o que é seu – virou bordado decorativo em salas de audiência. Na prática, o cidadão tem que implorar por aquilo que já é seu, por justiça, não por favor. É o paradoxo brasileiro: o povo precisa provar o óbvio, enquanto o Estado se comporta como se a justiça fosse concessão, e não obrigação.
A operação da Polícia Federal, batizada com precisão de “Sem Desconto”, expôs a engrenagem perversa: servidores omissos – ou cúmplices –, convênios forjados, fraudes grosseiras e um método reiterado. Não foi um caso isolado. Foi esquema.
Há golpes que ferem mais do que a violência física: os que iludem a esperança.
E não é só o INSS. A cada dia vem à tona o esfacelamento moral dos grandes fundos de previdência pública e complementar. Previ, Funcef, Petros, Postalis – todos foram, em algum grau, sequestrados por ingerências políticas, má gestão e interesses alheios à proteção do trabalhador. A Previc, órgão federal responsável por fiscalizar esses fundos, também falhou clamorosamente. O que se viu foi uma atuação tardia, quando não omissa ou complacente, diante de gestões temerárias e suspeitas. A instituição que deveria proteger os participantes tornou-se, muitas vezes, um espectador silencioso, ou parte do problema.
Uma elite dirigente usou a poupança da velhice para sustentar projetos de poder, enriquecimento pessoal e blindagem de aliados. Enquanto isso, o aposentado espera – e morre esperando.
E há ainda o drama silencioso da prova de vida: idosos obrigados a enfrentar filas, deslocamentos e barreiras digitais para comprovar que ainda respiram. Como se a velhice, por si, não bastasse como provação. Pior: multiplicam-se os achaques extraoficiais – ligações maliciosas, mensagens falsas, tentativas de golpe que se aproveitam da fragilidade emocional e da boa-fé. A “prova de vida” transformou-se, muitas vezes, em humilhação de morte.
O Estado, quando omisso, é cúmplice da dor. A sociedade, quando silente, compactua.
Carlos Lupi caiu. Mas não basta a queda de um presidente. É preciso reconstruir a confiança. A vergonha não pode cair junto com ele. Não se trata de ideologia, mas de decência. De ética. De humanidade. O Brasil precisa se olhar no espelho e perguntar: o que temos feito com nossos velhos? Com aqueles que construíram o país com suor, sacrifício e silêncio?
Em 1962, o embaixador Carlos Alves de Souza Filho disse, com dor: “O Brasil não é um país sério.” A frase, que muitos atribuíram a De Gaulle, continua atual. Porque ser sério é pagar o que se deve. É cumprir promessas. É proteger os que já cuidaram de todos nós. Justiça tardia é como pão que chega frio à mesa de quem já perdeu a fome.
O mais estarrecedor é ver o governo dizer que não sabe de onde tirar recursos para ressarcir os lesados. Ora, soube onde buscar quando foi para descontar do benefício. Faltaram mãos para proteger, mas sobraram mãos para saquear.
Não é falta de dinheiro. Falta vergonha. Falta Justiça. Quem sustentou este país por décadas merece mais do que descaso e discurso vazio. Merece respeito. Merece reparação.
A cada um, o seu – simples assim. Eis a tônica da justiça.