Relógios

Rubem Alves (1933-2014)

Relógios
‘O Pergaminho’ publica crônicas de Rubem Alves por ter recebido autorização escrita do próprio autor




Minhas netas: o lugar onde vivi quando criança se chamava “roça”. Vocês não sabem o que é “roça” porque roça quase que não mais existe. Não é fazenda. As fazendas de hoje não são “roça”. São um pedaço de cidade transportado para o campo. Nelas tem tudo o que as casas da cidade têm: telefone, geladeira, microondas, ar condicionado, carro importado na garagem, relógios de quartzo na parede. Nas fazendas, hoje, as pessoas não se assentam do lado de fora para contemplar o céu. Elas se assentam diante da televisão para ver as novelas.

O que é “roça”? “Roça” era um lugar onde não se usavam relógios. Na cidade, quando se quer saber as horas, consulta-se o relógio. Toca o despertador, são 6:00 da manhã. É hora de levantar, embora o corpo diga que é hora de continuar a dormir. O relógio do corpo e o despertador não estão de acordo. A quem a gente tem de obedecer? Ao despertador. A gente levanta com raiva, mal-humorado, por ser obrigado a fazer aquilo que o corpo não quer. São 7:00 horas, hora em que passa o ônibus da escola. É preciso estar no ponto para não perder o ônibus. São 7:30. No horário da escola... Preste atenção nessa palavra: “horário”. “Horário” é um programa para o corpo e para a cabeça, determinado por alguém que não nos consultou... Pois no horário da escola está determinado: aula de ciências. O horário me dá uma ordem: pare todos os pensamentos; pense só os pensa-mentos da ciência. Mas o seu corpo está dizendo: não consigo pensar em ciências. Sua cabeça não tem lugar para ciência. Que lhe importa saber uma fórmula de física ou uma equação de química? Força é igual a massa vezes aceleração. Ácidos, bases e sais. Mas no tempo vivo, tempo marcado pelo corpo, tempo que não se marca em minutos e horas, a sua cabeça está cheia com a briga do seu pai e da sua mãe, na véspera. As coisas que eles disseram um para o outro foram muito feias. O relógio de ponteiro e tic-tac diz que a briga aconteceu num tempo que já acabou. Mas no relógio do seu corpo, onde o que vale são as batidas do coração, o tempo da briga não passou. A briga continua acontecendo. Você está muito triste e com medo. Você gostaria mesmo era de conversar com alguém para desabafar. Mas, infelizmente, o horário da escola não prevê uma hora para esse tipo de conversa. Ele diz que é hora de pensar ciências. 

Eu, seu avô, gosto muito de um pensador francês chamado Roland Barthes, um dos homens mais sensíveis e inteligentes que conheci – através dos livros. Pois ele escreveu um ensaio (ensaio é um texto curto, sem pretensões científicas, que é escrito só para provocar o pensamento de quem lê) sobre a preguiça. Preguiça, coisa mais feia. A Igreja dizia que era um dos pecados capitais. Você sabe o que é pecado? Não? Nem eu. Pecado é uma palavra-morcego que perturba a beleza da alma. Caso isso não lhe tenha sido ensinado na escola, na aula de gramática, aprenda: há palavras-morcego, palavras-sabiá, palavras-gavião, palavras-maritaca, palavra-rolinha, palavras-araponga... Peça ao seu professor de biologia que lhe fale sobre esses pássaros e lhe conte sobre seus cantos. A Unicamp produziu dois lindos CDs sobre o canto dos pássaros brasileiros. Vocês deveriam ouvi-los na escola, quando estudarem os pássaros. Voltando à preguiça. Barthes disse que há dois tipos de preguiça. A primeira é a preguiça gostosa que se sente depois comer bem, barriga cheia, vem um sono, e o corpo bate horas: é hora de dormir na rede. Ai, que delícia! É o céu! A segunda preguiça é uma preguiça diferente, infeliz. Ele existe, segundo Barthes, principalmente por causa da escola. Porque o horário da escola diz e obriga: é hora de estudar para a prova de história. Mas o corpo diz uma outra hora: é hora de ler Harry Potter e a Pedra Filosofal. História cai no vestibular. Harry Potter não cai no vestibular. Existe, então, uma briga entre a hora da escola e a hora do corpo. E como o corpo da criança e do adolescente é mais fraco que o horário da escola, o corpo vai se arrastando, devagar, sem querer ir: é a preguiça infeliz. 

Na roça relógio não tem serventia. Na roça não é preciso relógio. Meu pai tinha um relógio de ouro, dos tempos em que ele era rico e morava na cidade. Ter um relógio de ouro era chique. Relógio era coisa rara, cara, só as pessoas importantes tinham relógio. Ele carregava o relógio no bolsinho da calça. Naquele tempo as calças tinham um bolsinho de se colocar relógios. E o amarrava com uma correntinha na alça do cinto. Olhando para um homem, vendo a correntinha, já se concluía: “Ele tem relógio!” Mas na roça o relógio não servia para nada. Virou objeto de decoração. Ficava dependurado num prego de um portal. Naqueles tempos um relógio exigia cuidados diários. Era feito doença crônica. Doença crônica é doença que não tem cura e que precisa de remédio, na hora certa, para a pessoa continuar viva. Eu não tinha pensado nisso: “crônico” vem da palavra grega “chronos”, que quer dizer tempo. Daí a palavra “cronômetro”: máquina de medir o tempo. Diabetes é doença crônica. Se se tomar o remédio todo dia, ela não mata. O corpo continua a viver. Mas, se não for cuidada, mata. Pois o relógio do meu pai era feito doença crônica: todo dia ele precisava de um remédio, para não parar. O remédio se chamava “corda”. Todo dia era preciso dar corda no relógio. Os relógios de hoje não são movidos a corda. São movidos a pilha. Pilha é uma coisinha cheia de energia elétrica engarrafada que se compra em lojas. A gente põe a pilha no relógio e a energia que está dentro dela vai fazendo o relógio andar. À medida em que o relógio anda a energia vai sendo gasta, até que ela sai toda, a garrafa fica vazia e é preciso trocar a pilha. A “corda” era uma forma antiga de se armazenar energia. Só que não era a energia elétrica que era armazenada. Era a energia do dedo, mecânica. O dedo polegar e o indicador agarravam um botão redondo que havia nos relógios, rodavam o dito botão para frente e para trás, movimento que ia enrolando uma espiral de metal que havia dentro do relógio, até que ficasse toda enrolada. Era essa espiral que tinha o nome de “corda”. À medida que o relógio ia funcionando a corda ia desenrolando e ficando frouxa. Era, então, preciso “dar corda” de novo. Se se esquecia de dar corda o relógio parava. As cordas eram também usadas nas vitrolas, que eram as bisavós dos aparelhos de som que temos hoje. Uma vitrola era uma caixa com uma manivela, um prato redondo e uma corneta grande, por onde o som saia. O disco ficava no prato redondo. Para fazer o prato rodar era preciso “dar corda” na vitrola. Quando a corda ia ficando frouxa o disco começava a rodar devagar e a música saia como se os cantores estivessem bêbados, cantando grosso e devagar. 

Meu pai dava corda no relógio de dó. Queria que ele, o relógio, não morresse. Que ele continuasse a tiquetaquear, na ilusão de que marcava as horas. Mas a roça é o lugar onde os relógios não marcam a hora. Quem marca a hora é a natureza. Na roça, para se saber que horas são, não se olha para o relógio: olha-se para as sombras no chão, para o vôo dos pássaros, para a floração das árvores. Consulta-se o relógio do corpo e obedece-se ao que o corpo diz. Veja esses versos da Cecília Meireles. Sem consultar relógios, ela sabia que horas eram...

“Esse odor da tarde, quando começa o cansaço dos homens.

Quando os pássaros têm uma voz mais longa, já de despedida. 

Declina o sol – essa é a notícia que a terra sente, na floresta, no arroio...

Uma nova brisa percorre a murta e resvala na relva...”

Cecília está dizendo que horas são. Ela não consulta o relógio. Ela não diz; “São seis horas”. Falar “seis horas” não diz nada. Diz só um mostrador de relógio. Para dizer as horas ela se põe a pintar o que ela via na natureza. Diz que a tarde tem um perfume, um odor especial. Ela sente a hora com o nariz. “Uma nova brisa percorre a murta...” As murtas são arbustos de folhas pequenas e flores brancas, muito perfumadas, parecidas com as flores de laranjeira. Quando a brisa percorre a murta, o ar fica perfumado. A natureza marca as horas com perfumes. Quando as “Damas da Noite” acordam, se abrem e soltam o seu perfume, sabe-se que é noite. Não é preciso consultar o relógio. Quando a tarde chega a natureza fica diferente. É a diferença da natureza que diz as horas. O vôo dos pássaros, de manhã, é completamente diferente do vôo dos pássaros, ao anoitecer. Um outro escritor que amo, Albert Camus, contemplando o vôo dos pássaros ao final do dia escreveu o seguinte; “Se durante o dia o vôo dos pássaros parece sempre sem destino, ao cair da noite dir-se-ia reencontrar sempre uma finalidade. Voam para alguma coisa...” Você já observou isso: durante o dia os pássaros voam adoidados, em todas as direções. Eles estão à cata de bichinhos. Mas, ao anoitecer, o vôo dos pássaros se parece com flechas. Não é mais hora de catar bichinhos. É hora de voltar para casa.

Se os ipês estão roxos, amarelos e brancos, sabe-se que é inverno. Se os flamboyants estão vermelhos, sabe-se que o verão está próximo. Se o capim gordura esta florido e os campos estão cor de rosa, sabe-se que é agosto. As cores das flores dizem as estações. Se os galos desatam em cantoria – canta um aqui, retruca outro lá longe, contesta um outro, mais longe ainda – é que a noite está terminando. Se as galinhas, que ciscaram o dia inteiro, param de ciscar, voltam para o galinheiro e começam a esticar os pescoços na direção dos poleiros, é que a noite está chegando. Se o corpo ficou com fome, é hora de comer. Se ficou com sono, é hora de dormir. Se o corpo ficou cansado, é hora de parar de trabalhar.

O relógio é o símbolo da nossa escravidão ao tempo urbano, ao tempo do “horário” que a cidade-máquina determinou. Pois a cidade é uma grande máquina que, para funcionar, todas as partes têm de estar sincronizadas. Com um relógio no pulso, nós mesmos nos transformamos numa peça da grande máquina cuja vontade é mais forte que a vontade do corpo. Antigamente, quando os relógios eram coisa rara, as fábricas apitavam de manhã, para acordar os operários. O apito das fábricas punha um fim ao tempo do corpo, ao tempo do sono. Os relógios são miniaturas dos apitos das fábricas. São símbolos de que já não somos seres da natureza. Já não sabemos o tempo pelos perfumes, pelo vôo dos pássaros, pelas florações das árvores... Que pena isso, o havermos perdido contato com a pulsação da vida e havermos nos transformados em engrenagens de uma máquina morta...