Crônica: 1962

Célia Maia (de Formiga)

Crônica: 1962
Célia Maia é poetisa




Meus sonhos foram feitos no barro da minha terra.
Minha terra que nem criança, que nem adulto, que nem poema, alcança!
Foi ali, em 1962, que eu, aqui, nasci!
De frente para Getúlio Vargas, rua larga, largo do Machado.
Ali, plantei meu pé de meia, meu pé de couve, meu pé de pêssego.
Vi a cidade trocar as luzes, trocar o chão de terra e também ir de paralelepípedo para asfalto.
Vi o progresso varrendo a história e o mundo dissolvendo em chamas. 2023!
Minha terra tem poesia nas veias, nas ruas, nos antigos.
Minha babá subia e descia comigo de mãos dadas a rua que hoje anseio pelo nome, (Silvano Brandão).
Minha memória escorrendo pelos ralos da evanescência.
Era chegada a hora de descer correndo ao sabor da rua íngreme com muro de pedras, (beco do suspiro).
Meu suspiro mais doce, inocente e perpétuo.
Pelo silêncio das ruas entendi o que silêncio faz em nossas vidas.
Faz paz, amor e longevidade.
O tempo, as luzes, os becos, as calçadas.
O passeio da Barão de Piumhi tinha na minha imaginação 12 metros ou mais.
A noite, nesta rua, o burburinho era de canções e sussurros pernitentes.
As casas não tinham muros ou cercas, parecia a extensão do largo do Machado, e era.
O cinema? Sim, minha cidade tinha teatro e cinema, os anos eram poéticos e boêmios.
A porta do cinema assemelhava-se ao globo da morte, sim, aquele que roda as motocicletas.
O pano de fundo era o mesmo que do mágico de Oz.
As janelas eram tão altas que nem o filme me prendia mais que a arquitetura.
Conhecer a cidade era como escavar um túnel.
A meia luz sem medo e sem identidade.
A primeira vez que desci o beco dos padres foi como experimentar vinho com uma espátula nas mãos.
Os galhos daquelas plantas que caiam sem jeito pelos muros de barro do beco dos padres enlouqueceram a minha imaginação.
Foi uma aventura percorrer os pequenos metros que, entre uma rua e outra, esboçavam e bocejavam a matemática mais subliminar e encantadora da adolescência.
Burlar a matéria e codificar o proibido.
Não era abraço ou beijo que eu buscava ou deles me furtava, era pelo código do proibido que eu procurava.
 Registrei os diâmetros e a desenvoltura do barroco para sempre.
Uma atmosfera cor de rosa marcava a entrada e a saída.
Não tinha nada ali além do guardião do sol, o inventor do barro e o criador das samambaias.