Opinião: Era só uma fotografia

Ana Pamplona (de Formiga)

Opinião: Era só uma fotografia
Ana Pamplona é membro do Coletivo Poesia de Rua




Era só uma foto do pré-primário. Marcelo a encontrou no fundo de uma caixa que estava dentro de uma gaveta emperrada de um armário que ele já deveria ter jogado fora. Num daqueles dias improváveis para se achar algo que você guardou há tanto tempo, não se sabe onde e que sempre fez questão de não encontrar. Mas guardou. Sabe-se lá por que.

Naquele dia, Marcelo ocupava o lugar que é um dos mais visitados do mundo. Aquele em que quase todas as pessoas já visitaram pelo menos uma vez em suas nobres ou pobres vidas: o fundo do poço. Pois naquele dia, ele estava naquele lugar. Atolado na lama até o pescoço. Por uma série de fatores. Sua situação financeira estava um desastre. Quebrado, era um termo ameno para o caso. A esposa lhe havia comunicado o pedido de divórcio e ele havia descoberto um câncer de próstata. “Não — pensou — o fundo do poço ainda está raso para a minha situação. Parece que o poço está no centro de um precipício que caí, e não há onde apoiar-me para subir. ” E parecia que estava chegando um furacão também. Mesmo assim ele foi até o armário procurar alguns papeis que precisava para tentar remediar alguma coisa que pudesse. 

A fotografia parecia ter saltado espontaneamente para suas mãos por debaixo das demais. Talvez ela quisesse ser encontrada. Retratava um tradicional “dia de tirar foto” da sua escola. Estava um pouco amarelada devido ao tempo, mas era nítida. Na imagem, Marcelo aparecia no meio dos colegas do pré-primário. As crianças estavam posicionadas em três fileiras. Na primeira fileira de cima para baixo estavam as crianças maiores, em pé. Algumas meninas ao meio, os meninos nas duas pontas. Na fileira do meio as crianças estavam sentadas em cadeiras e eram somente meninas. Na fileira de baixo, estavam sentadas no chão, todas com as pernas cruzadas à moda dos índios. Somente os meninos. Os menores. Era a fileira de Marcelo. Do lado esquerdo de quem olha a foto estava a professora, D. Cecília. De pé, muito elegante, cabelo bem arrumado, vestido de gola. Séria, mas com um arzinho de discreta felicidade.

Marcelo aproximou a fotografia dos olhos para observar os detalhes há muito esquecidos. Ele estava sentado com as pernas cruzadas, o rosto apresentando uma expressão contrariada, apoiado na mão direita. O outro braço estava engessado, os óculos um pouco tortos e o cabelo desgrenhado. Era o único nesta posição, todos os outros alunos estavam eretos e sorridentes, com os braços tranquilamente apoiados nas pernas. Exceto ele. Durante uma briga na porta da escola com um menino grande, chamado Tadeu, (o quarto à direita na fileira de cima, com um olho roxo e dente quebrado) ele caíra enquanto corria e fraturara o braço. Um menino havia colocado o pé na frente da sua perna provocando a queda. A diretora o levou ao hospital e precisou engessar. Foi um drama e tanto.

Olhando a fotografia amarelada recordou com tristeza esse fato e a tragédia que veio a seguir.

Haveria uma excursão ao zoológico da capital daí a dois dias. A turma iria de ônibus, haveria lanche, diversões e visita ao estádio do Mineirão. Mas Marcelo estava impedido de participar do passeio que esperaram com tanta ansiedade. Como se fosse um jogador de futebol que havia se contundido um dia antes do jogo mais importante do campeonato. Fazer o que? O médico não o liberou para a viagem. Disseram que foi castigo por causa da briga na escola. Ele achava que podia ser, mas quem aguentava a insolência daquele Tadeu? Não se arrependia pela briga. Havia colocado o grandão no seu devido lugar. Inclusive quebrara um dente dele e deixou seu olho roxo. Infelizmente, a turma do adversário não soube perder e o derrubou. Depois comemoraram o fato de Marcelo estar impedido de ir ao passeio. Pois bem: não iria ao zoológico, mas não se arrependia por ter machucado aquele “judas”. Mereceu. Ponto!

Pois foram. Viajaram. Saíram cedo. Da esquina, Marcelo ficou observando despeitado, a algazarra da turma partindo no ônibus velho.

Daí a algumas horas veio a notícia trágica: o ônibus com 40 passageiros entre crianças e adultos sofrera um acidente, bateu frontalmente com uma carreta e rodou na pista caindo no precipício. Sobrou pouca gente para contar a história. Nem a feliz D. Cecília.

A mãe de Marcelo, D. Dadá, chorou muito lamentado a perda trágica de tantas pessoas. Mesmo assim, ajoelhou-se em frente ao seu oratório e rezou, agradecida pelo filho ter fraturado o braço. 

Lembrando desses fatos trágicos em sua vida, registrados por aquela foto até então insignificante, até incômoda, que acusava a contrariedade em seu rosto, o braço quebrado, a rivalidade entre adversários e outras querelas comuns da infância de toda criança, Marcelo, então, imitou a atitude da mãe. Ajoelhou-se e rezou em agradecimento pela vida e pelas almas daquelas pessoas do seu passado.

A vida ficaria bem. Ele ficaria bem...