Opinião: Foi interditado sem que houvesse produção de prova pericial

Maria Lucia de Oliveira Andrade (de Formiga/MG)

Opinião: Foi interditado sem que houvesse produção de prova pericial
 Maria Lucia de Oliveira Andrade Membro da Academia Formiguense de Letras




Encontro-a, por acaso, no supermercado. Paramos para conversar e pergunto por sua família. Isso desencadeia um relato extenso, o que revela a mim sua necessidade de desabafar.

Sempre foi uma filha dedicada aos pais, ainda que tivesse marido e filhos. Acompanhou a mãe em sua doença até o fim. Agora, o pai, que já tem oitenta e cinco anos, está apresentando um quadro compatível com o mal de Alzheimer. Sua atenção está toda voltada para ele. A memória dele já está afetada. Como tem dificuldade para raciocinar e realizar tarefas do dia a dia, os irmãos e ela decidiram ajuizar uma ação de interdição com pedido de curatela, na qual ela foi indicada como curadora. A ela competirá prestar assistência ao pai, bem como administrar os valores referentes às duas pensões que ele recebe (uma da aposentadoria, outra por causa da morte da esposa), pois ele passa a maior parte do tempo deitado.

Na ação, apresentou todos os documentos necessários, inclusive um laudo do médico assistente do pai, atestando as limitações e o quadro de saúde dele. Ela alegou, também, que ele não tem mais condições de expressar sua vontade e gerir a própria vida.

O pedido de interdição foi acolhido pelo Juízo, e ela foi instituída como curadora do pai. Porém, sem entender como a Defensoria Pública se envolveu no processo, ficou sabendo que esta apelou ao Tribunal requerendo a nulidade da interdição.

Ela me pergunta se corre o risco de o Tribunal acatar esse pedido.

Explico-lhe que a interdição e a curatela são medidas extremas e que só são impostas se ficar comprovada a incapacidade da pessoa para praticar atos da vida civil. O objetivo que se quer alcançar com a curatela é a proteção dos interesses dessa pessoa que é ou se tornou incapacitada de gerir a própria vida. Com a curatela, passa a ter um representante legal, um administrador de seus bens. 

Ela me diz que sabe disso, e que fez tudo direitinho. O laudo médico que foi juntado à petição inicial deixava claras as condições de saúde do pai.

Digo-lhe que, para a interdição, não basta esse laudo médico. Não basta descrever a doença da pessoa. Não basta que ela tenha uma doença incapacitante. É preciso comprovar que tal doença a limita a ponto de não conseguir gerir seus bens e a própria vida, tornando-a incapaz de praticar atos da vida civil. É preciso que seja produzido um laudo pericial dentro do processo, de modo que a pessoa que está sendo interditada tenha preservado seu direito de defesa.

Teria de ter sido determinada pelo Juízo a produção da prova pericial. Com isso, seria feito um exame pelo médico perito designado pelo Juízo para que fosse examinado o impacto da doença sobre o pai dela, sua extensão e os limites que impõe a ele; se, de fato, a moléstia está impedindo que ele expresse, de forma livre e consciente, sua vontade. 

Por ser uma medida extrema, a curatela tem de se fundamentar em prova consistente da incapacidade da pessoa a ser curatelada. Exames médicos, entrevista com ela, exame do médico perito judicial e, se for preciso, avaliação por uma equipe multidisciplinar são formas de tornar robusta a comprovação. É na análise dessas provas que o Juízo se baseia para determinar a proporção, o alcance e a duração da curatela, conforme a necessidade e as circunstâncias de cada caso.

Comento que, diante do que ela me contou e do fato de que não foi realizada a perícia judicial, é provável que seja considerado nulo o processo de interdição, e seja cassada a decisão do primeiro Juízo. 

Ela fica apreensiva. Não sabe como conseguirá cuidar das coisas do pai, sem ter a curatela dele. Tento tranquilizá-la. Os autos retornarão ao primeiro Juízo, pois certamente o Tribunal determinará a realização da prova pericial. Se ficar comprovado que o pai está mesmo nas condições que ela me descreveu, o pedido de curatela será acolhido. Se não se falta com a verdade, não há o que temer.

Compromissos me esperam, por isso encerro nossa conversa. Desejo-lhe êxito no processo, e saúde para ela (precisará de muita) e para o pai. 

Nós nos embrenhamos nos corredores do supermercado, cada uma seguindo seu caminho, ambas imersas nos pensamentos que ecoam da conversa que tivemos.