Crônica: São Luís do Maranhão

Rubem Alves (1933-2014)

Crônica: São Luís do Maranhão
‘O Pergaminho’ publica crônicas de Rubem Alves por ter recebido autorização escrita do próprio autor




A Adélia Prado definiu a poesia como uma perturbação da visão. Disse ela: ‘Deus de vez em quando me castiga. Me tira a poesia. Olho para uma pedra e vejo uma pedra.’ Mas o certo não é ver pedra quando pedra é o que há? Se olho para uma pedra e vejo outra coisa é porque meus olhos estão perturbados. Pois é isso mesmo que a poesia faz: a gente olha para a pedra e vê uma outra coisa que não está lá. Isso que a gente vê na pedra e não está na pedra, está dentro da gente, na alma. Para os poetas o mundo é um espelho de mil faces em que a alma se contempla. Daí a felicidade narcísica da poesia... A poesia é uma alteração da percepção visual. Chego a temer que, algum dia, ela venha a ser classificada como droga alucinógena...

Mas há coisas no mundo que, quando olho para elas, só vejo elas mesmas. É o caso das casas novas, tão modernas, tão certinhas. Olho para elas e o que vejo? Vejo casas novas, tão modernas, tão certinhas... Com as casas velhas é diferente. Basta que eu veja uma delas para que meus olhos fiquem perturbados e eu comece a ver coisas. Casas velhas me poetizam.

Amo as casas velhas mais que as novas. As casas velhas são moradas de memórias e saudades. Mas, o que mora nas casas novas? Nada. São vazias. Meu amor pelas casas velhas se deve, talvez, ao fato de que passei parte da minha infância no sobrado colonial do meu avô. Velho, muito velho, estava cheio de quartos proibidos e espaços misteriosos. Nele moravam ainda recordações de escravos e senzalas. A nega Iáiá, escrava forra que cuidou da minha mãe, lhe contava estórias de Angola que depois minha mãe me contou. E não faltavam os jasmins, a flor do imperador, os cravos, a malva, a hortelã.... Não sei quantos anos terão sido necessários para construí-lo, com suas paredes de pedra de um metro de largura e seus vidros coloridos importados da Europa. Contava estórias do sobrado de meu avô para minha analista e ela me dizia, espantada: ‘Mas doutor, isso é muito mais fascinante que \'Cem Anos de Solidão\'’.

O sobrado do meu avô não existe mais. Queimou numa imensa fogueira. Em poucas horas todo o mistério foi reduzido a cinzas. Construir demora. Destruir é rápido. Por vários dias os gigantescos barrotes de pau bálsamo continuaram a queimar, exalando seu cheiro delicioso de nunca-mais. Mas não foi acidente. Um homem, que alugava uma loja no térreo, o incendiou. Lucílio, era o seu nome. Não satisfeito, continuou a incendiar outras casas antigas. Descoberto e preso justificou os seus atos: ‘Detesto casas velhas. Gosto de casas novas, modernas. O que eu desejava era criar condições para a modernização da cidade.’ Ele foi bem sucedido. A cidade se modernizou. No lugar onde estava o sobrado hoje se encontra o Banco do Brasil. Só que, quando olho para o prédio do banco eu só vejo o prédio do banco. Sob um certo ângulo, seu Lucílio estava certo: as coisas velhas atravancam o progresso. Seu Lucílio tinha uma fina percepção das implicações do progresso: ‘Queimar o velho para dar lugar ao novo.’ O progresso e a riqueza são incendiários.

Assim tem acontecido. Foram-se as florestas de pinheiros araucária. Pinheiro cortado vale mais que pinheiro em pé. Foi-se a Mata Atlântica. Vão-se as matas, avançam os desertos. E os rios e riachos cristalinos? O Tietê, caldo grosso de veneno. Nas suas águas nada vive. Esgoto fedido. Fugiram os peixes. Os que não conseguiram fugir - de vez em quando aparecem boiando nos rios, cobertos de moscas. E também as praias estão indo, transformadas em cimento e barulho.

Meditando sobre a filosofia do seu Lucílio compreendi o que aconteceu com os espaços antigos do Brasil, as praças, casas, quintais, ruas, chafarizes... Foi assim: as cidades que, de repente, foram invadidas pela euforia do dinheiro e do progresso destruíram seus inúteis espaços antigos. Por que preservar casas velhas inúteis e feias se é possível construir casas novas, úteis e modernas em seu lugar? Já nas cidades que ficaram à margem da riqueza e do progresso (que tristeza!) os lugares antigos sobreviveram, arruinados. O antigo sobreviveu por causa da pobreza...

Foi-se o sobrado mas permanecem os cenários antigos na alma. O Vinícius disse que a alma dele era um círio que ardia numa catedral em ruínas. Eu digo que a minha alma é um manacá perfumado num jardim abandonado. Lembrei-me de um texto de Guimarães Rosa sobre os jardins abandonados, em que ele se refere ao ‘jasmim do Imperador - de todos o mais querido’. E me lembrei também de um hai-kai de Bashô: ‘Na velha casa que abandonei as cerejeiras florescem...’

Vez por outra, diante das casas antigas e seus jardins, eu me reencontro de novo comigo mesmo como fui, menino. Foi o que me aconteceu quando visitei, faz poucos dias, São Luís do Maranhão. São Luís: para mim, até aquele momento, nada mais que um nome vazio, uma bolinha no mapa. O nome não me fazia pensar em nada. Aí eu cheguei lá, comecei a perambular pelas ruas do seu centro antigo, e uma alegria começou a tomar conta de mim. O menino que mora em mim, aquele que brincava no sobrado do meu avô, acordou do seu sono. A poesia se virou os meus olhos. Começaram a brincar. Olhavam para as casas e não viam as casas. Viam o sobrado do meu avô. Senti-me voltando para casa. Eliot disse que ‘ao final de nossas longas explorações chegaremos finalmente ao lugar de onde partimos e o conheceremos então pela primeira vez.’ Estaria eu voltando? Retornando ao lugar de onde parti? Será que eu, adulto, sou um estranho, exilado, no mundo da modernidade e das casas novas? O sobrado do meu avô, as casas antigas de São Luís - tão distantes no espaço e no tempo! E, no entanto, habitantes de um mesmo tempo, de um mesmo mundo. As casas antigas de São Luís e o sobrado antigo do meu avô não são casas desse mundo, são casas de um mundo que não existe mais, que existe só na saudade onde moram os sonhos. Mas, como a alma é feita de saudade, esse mundo que não existe do lado de fora continua a existir do lado de dentro. E lá estava eu, menino, andando pelas ruas antigas. Dantes tristes de abandono e pobreza agora estavam lá, as casas, diante de mim, alegrinhas e coloridas, exibindo os seus encantos.

Não eram peças de um museu. Estavam vivas. Faziam parte do cotidiano das pessoas que enchiam as suas ruas. Lindo, pela simplicidade e harmonia de suas linhas, o Teatro. A meninada adolescente o enchia, para o grande circo do ‘Bumba-meu-boi’. Me lembrei do Teatro Municipal de Campinas, coitado. Não teve tanta sorte. Não foi protegido pela pobreza. Foi destruído pela modernidade, sem ter tempo de gritar. O povo, acho que estava distraído...Foi destruído por homens empreendedores e amantes da modernidade, feito o sobrado do meu avô.

Fiquei grato pela pobreza. Foi por causa dela que o passado sobreviveu, lá em São Luís. ‘Creio na ressurreição dos mortos’ : assisti o passado morto sendo trazido de volta à vida. O dinheiro, entregue à sua própria fome, é monstro que devora tudo, praga de gafanhotos. Mas quando domado pelos desejos de beleza, ele pode fazer maravilhas. Esse era o sonho dos pensadores utópicos do século XIX, que contemplavam a marcha devastadora da riqueza. Sonhavam com uma economia em que o dinheiro seria como aqueles gênios da garrafa, poderosos mas sem vontade própria, obedientes às ordens do coração.

As velhas casas de São Luís me deram olhos de poeta. Quem sabe chegará um dia em que os administradores pedirão conselho aos poetas. Parece que isso aconteceu lá em São Luís do Maranhão...