Opinião: Antonio Vermigli (1951-2023): meu tipo inesquecível

Frei Betto (de São Paulo/SP)

Opinião: Antonio Vermigli (1951-2023): meu tipo inesquecível
Frei Betto é escritor




Imagino que todos conhecemos pessoas que, dotadas de um talento excepcional, gostaríamos que muitos de nossos amigos e amigas também conhecessem. É o caso do meu querido amigo Antonio Vermigli, que transvivenciou neste mês de julho.

Antonio era dirigente da Rete Radié Resch, associação de solidariedade internacional, fundada na Itália em 1964. Radié Resch é o nome de uma menina palestina que, naquele ano, morreu de pneumonia. Por falta de casa, habitava com a família em uma caverna úmida de Nazaré. O primeiro projeto da Rete consistiu em financiar a construção de casas para famílias palestinas em Nazaré e Belém, pois haviam sido expulsas de seus domicílios pelas tropas do governo de Israel.

Foi graças à minha prima, Maria Inês Libanio, radicada há décadas na Itália, que em 1980 conheci Antonio. Ela trabalha na Fundação Internacional Lelio e Lisli Basso, que se dedica à defesa dos direitos humanos em países periféricos e promove o Tribunal Permanente dos Povos. 

Durante a greve dos metalúrgicos do ABC paulista, em 1980, assumi a direção do Fundo de Greve a partir do momento em que os diretores do sindicato começaram a ser presos. Fui à Europa em busca de apoio. Então, por indicação da Fundação Basso, conheci Antonio. Desde então mantivemos contato. 

Nos últimos 40 anos, com poucas exceções, como o período da pandemia, passei uma ou duas semanas na Itália a convite da Rete. Antonio estabelecia previamente o programa de palestras e me ciceroneava por inúmeras grandes e pequenas cidades, muitas chamadas de “paese”. Havia dia em que eu falava sobre o mesmo tema em dois “paesi”, um vizinho ao outro. As distâncias entre os dois são tão curtas, que custei a entender por que não concentravam o público de ambos no auditório de um só. O forte sentimento regionalista dos italianos exigia que cada “paese” tivesse a sua exclusividade.

Todos os anos Antonio levava à Itália figuras latino-americanas que, durante uma ou duas semanas, pudessem percorrer diversas cidades para proferir palestras e, assim, angariar recursos para projetos na América Latina. A lista é longa, mas destaco as mais conhecidas: Lula, Aleida Guevara (filha do Che), Rigoberta Menchú (Prêmio Nobel da Paz), Leonardo e Waldemar Boff e Marcelo Barros. 

Durante o período das visitas, Antonio se desdobrava em motorista, publicitário, tesoureiro, livreiro, hospedeiro, e no que mais preciso fosse para nos assegurar conforto e êxito no trabalho. Sempre solícito e irreverente, dirigia como se pilotasse um avião (o que lhe valeu, antes da fundação da Rete, um grave acidente e aposentadoria precoce da profissão de carteiro). Jamais demonstrava o menor cansaço, sempre com um humor exuberante. Saudava os amigos quase aos gritos, o que despertava a atenção de todos em volta, e seu jeito efusivo se expressava na gesticulação envolvente. Sósia de Robert De Niro, inclusive nas tiradas irônicas, várias vezes vi-o ser alvo da atenção de pessoas surpreendidas por cruzarem com o “ator”...

Não conheci outro que, com tanta liberdade, zoasse de Lula e outras personalidades sem provocar nenhum constrangimento. Em 2012, quando minha mãe, Maria Stella Libanio Christo, levou a culinária mineira para a feira internacional do Slow Food, em Turim, ela, minha irmã Cecília e eu, tivemos Antonio como motorista e cicerone. Numa avenida de Turim, quando os veículos estavam todos travados num engarrafamento, Antonio largou o volante, desceu e, como um mestre a admoestar seus pupilos, proferiu um veemente discurso sobre a inutilidade de buzinaço naquelas circunstâncias. 

Vivia em Quarrata, na Toscana, numa casa modesta à beira da estrada. O espaço da garagem era dividido com pilhas de livros de autoria de seus convidados, que ele mesmo cuidava de mandar imprimir para obter, com a venda nas palestras, fundos destinados aos projetos da Rete. Um deles, meu “Batismo de sangue”. 

Em Quarrata, Antonio fundou a Casa da Solidariedade, que abrigava pessoas amigas vindas de muitos países, e na qual costumava exibir seus dotes culinários aos hóspedes. Em um único ponto jamais concordamos: de que a pizza italiana é melhor que a paulista. Pode ser, mas nunca aprovei nenhuma das tantas que ele me ofereceu Itália afora. Prefiro as de massa fina, leve, crocante, sem bordas pronunciadas, que só encontro em São Paulo.

Invariavelmente Antonio levava seus convidados para almoçar frutos do mar no Le Fontanelle, nas cercanias de Quarrata. Como era amigo da família proprietária, entrava aos gritos saudando os funcionários, caçoava de maitres e garçons, brincava com as mulheres, invadia a cozinha para decidir o cardápio, contava piadas, como se seu estado de espírito fosse uma festa incessante.

Todos os anos, em setembro, ele promovia, por ruas e estradas que unem Agliana e Quarrata, a Marcha da Justiça, sempre liderada por personalidades que convidava. Participei em 1998 ao lado de Lula, Rigoberta Menchú e do humorista Pepe Grilo que, mais tarde, fundaria o partido Cinco Estrelas.

Antonio vinha quase todo ano ao Brasil visitar os trabalhos sociais subsidiados pela Rete, e sempre acompanhado de seu inseparável parceiro Vito Sávio e extensa comitiva de colaboradores da Rete interessados em conhecer as obras beneficiadas pelos recursos advindos da Itália. Na programação, contatos com o MST, com o qual tanto se identificava, e visita a Lula, que o adotava como guia quando passava pela Itália.

Sua transvivenciação precoce deixa um profundo vazio no coração de todos nós que tivemos o privilégio de desfrutar de sua convivência. Deus o tenha, graciosa e divertidamente.