Crônica: MANDE UM ANJO!

Rubem Alves (1933-2014)

Crônica: MANDE UM ANJO!
‘O Pergaminho’ publica crônicas de Rubem Alves por ter recebido autorização escrita do próprio autor




Toninho: no próximo dia 10 vão se completar três meses da sua partida. Você sabe que eu não votei em você. Mas poderia. Eu confiava em você. Eleito, fiquei à sua disposição para ajudar no que fosse possível. Tínhamos sonhos comuns. Gostávamos de jardins. Foi sobre jardins que conversamos na última vez em que estivemos juntos. Inspirado naquele artigo meu “Sobre Política e Jardinagem” você me revelou que estava planejando começar um projeto de formação de jardineiros em Campinas. E me convidou para cooperar. Mas é claro! Pois eu acho que a jardinagem é a melhor escola da política. Cidadania é isso: quando todos se sentem jardineiros, cuidadores do espaço da cidade. Na jardinagem o poder fica bonito porque ele se dedica a fazer um mundo melhor.

Meu pai morreu pobre. Não deixou herança. Por isso eu e meus irmãos nunca brigamos. Não havia uma herança a ser disputada. Existindo uma herança os irmãos se tornam inimigos. A se acreditar no que dizem os jornais, sua partida está criando problemas: uma briga sobre a terrível herança que você deixou. Se, de onde você está, você leu a estória sobre “Os ratos, o gato e o queijo”, você entendeu. Esta estória, eu a escrevi faz muitos anos. Mas a sua verdade é permanente. Os ratos eram irmãos enquanto não tinham o queijo. Bastou ter o queijo para que os ratos virassem gatos...

Sua herança terrível: o poder. O poder é a lâmpada mágica de Aladim que, uma vez esfregada, um gênio todo poderoso sai de dentro dela para realizar aquilo que o seu dono determina. Com a sua morte a lâmpada ficou sem dono. E surge, então, a inevitável pergunta: Quem vai ficar com a lâmpada? Quem vai poder dar ordens ao gênio?
A sociologia é uma ciência cruel. Ela mostra que, em todas as instituições, sem exceção, existe uma briga pela posse da lâmpada. Não importa que sejam cooperativas de plantadores de rosas, sindicatos de prostitutas, ordens religiosas, instituições médicas, times de futebol, asilos de velhinhos... Tão diferentes umas das outras, não é? Mas, no fundo, lá no fundo, há uma briga pelo poder.

Essa briga fica mais clara em dois tipos de instituições: as empresas e os partidos políticos. Nas empresas o nome da lâmpada é lucro, independentemente daquilo que elas produzem. Uma empresa pode produzir rosas ou armas: independentemente do que produzem, elas precisam de lucro. O dinheiro é a vida das empresas.
Nos partidos políticos o nome da lâmpada é poder. O objetivo primeiro de um partido é a tomada do poder. Aquilo a que se dá o nome de processo democrático é a luta para se apossar da lâmpada mágica.

Mas é claro que nem as empresas e nem os partidos falam abertamente sobre isso. As empresas, quando se dirigem aos seus clientes, só falam sobre coisas que dão beleza, coisas que dão saúde, coisas que poupam o trabalho, coisas de amor... E os partidos políticos, ao se dirigirem aos eleitores, vão como a Banda, cantando coisas de amor: educação, saúde, segurança, proteção aos velhinhos, emprego para todo mundo, justiça... Todos tocando a mesma música.

O que vou dizer aprendi de Santo Agostinho, em suas meditações sobre a política. É assim: tudo na vida se faz com uma mistura de poder e amor. Para fazer um jardim eu tenho de ter um sonho de amor, o jardim que amo; e poder para plantá-lo. Para fazer uma casa eu tenho de ter amor – a casa dos meus sonhos – e poder para construí-la. O poder é bom quando está a serviço do amor. Mas, de vez em quando, acontece um revertério: o poder se esquece do amor e fica solto. Solto, sem objeto, o poder se apaixona por ele mesmo. Quando isso acontece é o pandemônio, é a luta, é a possessão demoníaca. O poder se esquece do amor, os políticos se esquecem do povo, os jardineiros se esquecem dos jardins...

Aí, acontece o inverso da Banda. Ao invés de cantar coisas de amor, os partidos começam a cantar coisas de poder. E o povo não é bobo. Percebe. Ouvindo coisas de amor o povo marcha alegremente na avenida. Ouvindo os ruídos da briga pelo poder o povo fica triste, perde a esperança e debanda...

Estou triste. Tenho medo de que seja isso o que vai acontecer. Campinas já sofreu muito. Campinas não merece. Campinas teve esperança. Está deixando de ter. Será que você não pode mandar um Anjo para acabar com a briga?