Crônica: O LOBO E O FALCÃO
Rubem Alves (1933-2014)
Você disse estar enfeitiçada: você e o seu amado. Disse que o que está acontecendo com vocês é o que aconteceu no filme "O feitiço de Áquila", sobre que já escrevi. Disse que eu sou feiticeiro. Pediu um contra-feitiço. De fato, sou um feiticeiro. Conto estórias para quebrar feitiços. É isso que faz um psicanalista contador de estórias. Estórias têm um poder mágico. Elas produzem metamorfoses inesperadas nas pessoas. Quem o diz é Guimarães Rosa. E, se ele, bruxo-mór, disse, quem sou eu para contradizer?
Assim, no exercício de meus poderes de feiticeiro, vou recontar a estória, do jeito mesmo como já contei neste jornal. Menos o final. Preste bem atenção no final. Ele vai ser diferente. É nele que está o contra-feitiço.
"Ele, guerreiro, cavalgava um cavalo negro. Seus olhos eram tranquilos, seu rosto era triste, seus cabelos eram dourados como a luz do sol, e a sua voz só se ouvia depois de longos silêncios.
Ela era diáfana como a lua, seus cabelos eram negros como a noite, e a sua voz era mansa como a luz das estrelas.
Eles muito se amavam e o seu amor era belo.
Mas havia naquela terra um feiticeiro que manipulava os poderes do mal. Ele viu a moça-lua e se apaixonou por ela. Quis tê-la para si mesmo. Mas ela amava o guerreiro e repeliu os gestos do feiticeiro. Este, enfurecido, lançou sobre os amantes um feitiço: estariam condenados, pelo resto dos seus dias, a nunca se tocarem. A mulher seria como a lua. Só apareceria à noite, depois do sol se por. Durante o dia ela seria um falcão caçador, branco, com bico e garras de rapina. E seu amado seria como o sol. Só apareceria durante do dia, depois do sol nascer. Durante a noite ele seria um lobo negro caçador.
E assim aconteceu. Durante o dia o guerreiro cavalgava o seu cavalo levando no ombro sua amada, falcão branco. Vez por outra o falcão alçava vôo, subia até as alturas, e de repente, com um pio estridente, mergulhava como uma flecha para pegar alguma presa. Durante o dia o falcão voltava a ser mulher, e ficava ao lado do seu amado, lobo negro, que se deitava aos seus pés e lambia suas mãos. Vez por outra ele se levantava e entrava sozinho na floresta escura, para viver a sua vida selvagem de lobo.
Mas havia um breve momento encantado quando eles quase se tocavam. Ao por-do-sol, quando a luz do dia se misturava com o escuro da noite, era o momento mágico: o falcão voltava a ser mulher e o guerreiro se transformava em lobo. Ao nascer do sol, quando o escuro da noite se misturava com a luz do dia, o lobo voltava a ser o guerreiro e a mulher se transformava em falcão. Nesse brevíssimo momento os dois apareciam um ao outro como sempre tinham sido e viviam por um segundo a beleza do seu amor. Suas mãos se estendiam, uma querendo tocar a outra - mas o toque era impossível. Antes que suas mãos se tocassem a metamorfose acontecia. E não podiam se amar como homem e mulher.
O guerreiro amava o falcão. Ele sabia que dentro do falcão vivia sua amada de voz mansa. Mas ela vivia encantada, adormecida. Dela, o que ele tinha, era apenas a ave muda, mergulhada no silêncio do seu mistério. Ele acariciava suas penas - mas um falcão não é uma mulher. O falcão não era a sua amada. Ele a carregava na pequena esperança do momento encantado e na grande esperança de que, um dia, o feitiço fosse quebrado.
A mulher amava o lobo. Ela sabia que dentro do lobo vivia o guerreiro de olhos profundos que ela amava. Mas ele vivia encantado, adormecido. Dele ela só tinha os olhos mergulhados no silêncio. Ela acariciava o seu pelo negro - mas um lobo não é um homem. O lobo não era o guerreiro que ela amava. Ela o acariciava na pequena esperança do momento encantado e na grande esperança de que, um dia, o feitiço seria quebrado.
O amor pode muito. Ele é poder bruxo, mais forte que os feitiços maus. E aconteceu que, um dia, depois de uma luta horrenda, o feiticeiro foi morto e o feitiço foi quebrado. E o guerreiro voltou a ser o guerreiro que sempre fora, e a mulher voltou a ser a mulher que sempre fora. E as suas mãos puderam se tocar e tudo foi alegria e eles se casaram e viveram felizes para sempre..."
Assim termina a estória, com um fim feliz. Pois o meu contra-feitiço exige que o fim da estória seja esse outro. E é esse outro fim que passo a lhe contar.
"O guerreiro, não podendo suportar a tristeza da sua condição, resolveu procurar um feiticeiro bom que tivesse poder maior que o feiticeiro mau. Ele se chamava Merlin. O guerreiro foi à sua morada-caverna, no alto de uma montanha, levando ao ombro o seu falcão. Lá chegando contou-lhe a sua desgraça e formulou o seu pedido: queria que ele e sua amada deixassem de ser lobo e falcão e voltassem a ser homem e mulher, para que pudessem se amar.
Merlin fez um grande silêncio e lhe disse: "Não posso atender ao seu pedido porque isso seria a sua perdição, o fim do seu amor. A magia nada cria. A magia só tem o poder para trazer das profundezas aquilo que lá existia. Você, no fundo da sua alma, é um lobo selvagem. A sua amada, no fundo da sua alma, é um falcão selvagem. Ela o amava porque via, no fundo dos seus olhos mansos, um lobo que andava sem medo por florestas escuras. E você a amava porque via, no fundo dos seus olhos mansos, um falcão que voava sem medo nas alturas. Se eu, por um feitiço, destruir o selvagem que há em você e o selvagem que há nela, não mais haverá mistérios dentro dos seus olhos. Vocês se transformarão em animais domésticos: um cão que abana o rabo para ganhar um osso, uma pata que não consegue voar. Vocês viverão sempre juntos, até que a morte os separe - animais domésticos não se separam; eles têm medo das matas escuras e das alturas das montanhas. Domesticados, vocês se transformarão em seres banais. Você não terá estórias das matas escuras para lhe contar e nem ela estórias de vôos pelos picos gelados das montanhas. Sobre que vocês conversarão? O seu amor se transformará num tédio interminável.
O guerreiro chorou. "Então, nosso amor está condenado?" "Não", disse Merlin. "Há esperança, mas não do jeito como vocês querem. O que vou fazer não é desfazer o feitiço, mas rearranjar o feitiço. Quando os primeiros raios de sol iluminarem o horizonte, você se transformará em lobo e ela se transformará em falcão. Você irá para o mistério das matas e ela para os mistérios dos céus. E assim vocês serão lobo e falcão, cada um no seu caminho, sozinhos, até que o sol se ponha. Quando o sol se puser e a primeira estrela aparecer, você voltará a ser o guerreiro-sol, e ela voltará a ser a mulher-lua. Aí então, quando cessam os barulhos e a correria do dia, vocês se encontrarão, se abraçarão e se amarão."
Ditas essas palavras Merlin ficou silencioso. Acendeu a fogueira na sua caverna, porque estava ficando frio. O sol estava se pondo. A noite se aproximava. Aceso o fogo, ele pronunciou palavras de bruxedo e despediu o guerreiro com o seu falcão.
O guerreiro, falcão no ombro, começou a longa descida da montanha para a planície. Seu rosto estava iluminado pelos últimos raios do sol que se punha. E foi então que, no meio do céu, ele viu a primeira estrela que aparecia...