Crônica: O Anestesista

Rubem Alves (1933-2014)

Crônica: O Anestesista
O Pergaminho’ publica crônicas de Rubem Alves por ter recebido autorização escrita do próprio autor




A anestesia foi a primeira de todas as especialidades médicas. São as Escrituras Sagradas que afirmam. Pois Deus, para retirar de Adão a costela necessária para a criação de Eva, fez cair sobre o homem um sono profundo. Isso, fazer dormir, é ato de anestesista. Foi só então, depois de exercer as funções de anestesista, que Deus se transformou em cirurgião. Deus não queria que o homem sentisse dor. Uma cirurgia feita sem anestesia é uma experiência de uma brutalidade indescritível. Muitos prefeririam morrer a sofrer os horrores da dor de uma cirurgia sem anestesia. O livro O Físico descreve como era a cirurgia antes da descoberta da anestesia. Amputação de uma perna. A pessoa amarrada. A navalha cortando a carne. O gritos. As contorções do corpo. O sangue jorrando. Depois a serra no seu reque-reque serrando o osso. Seguia-se a costura da carne. E, para terminar, o cautério com azeite fervente ou ferro incandescente.

A dor é o que existe de mais terrível na condição humana. Muito cedo nós a experimentamos. O nenezinho chora e se contorce com suas cólicas. Delas não tenho memória. Mas me lembro das cólicas do meu primeiro filho, que chorou por seis meses, sendo que todos os chás, remédios e benzeções foram inúteis. A única coisa que aliviava era pegá-lo no braço e colocá-lo de barriga para baixo. Todo pai gostaria que os deuses fossem caridosos e transferissem para ele a dor do filho. Doeria menos sentir a dor do filho que vê-lo sentindo dor sem nada poder fazer.

Dores fazem parte da infância: dor de barriga, dor de dente, dedo cortado com faca, pé cortado em caco de vidro, perna quebrada, galo na testa, martelada no dedo. Aos doze anos entrei correndo na cozinha no momento em que a cozinheira levava uma panela de água fervente. A colisão foi inevitável. A água me caiu no ombro e escorreu pelo peito e pelo braço direito. Ainda tenho marcas. Nunca me esquecerei. Depois vieram outras dores. Cólica de apendicite, cólica de cálculo renal. Dizem que é pior que dor de parto. Só me lembro que uma vez, havendo sido inúteis seis injeções de buscopan, a dor sendo tão forte que o vômito vinha, o médico ordenou a dolantina. Cinco minutos depois eu não tinha mais dor. Conheci então a felicidade celestial! Não existe nada mais maravilhoso que não sentir dor! Experimentei depois as dores das hérnias de disco. Há sempre o recurso à cirurgia - mas não é sempre que os resultados são definitivos. Um ortopedista que consultei me disse: "Só opero hérnia quando o paciente ameaça suicidar!..." Claro, foi uma brincadeira. Brincadeira curta que juntava duas verdades. Primeiro, o caráter duvidoso da cirurgia. Segundo, que a dor pode ser tão forte que as pessoas chegam a imaginar que viver com dor tamanha não vale a pena. É melhor morrer. Na morte não se sente dor.

Meu filho Sérgio, o que sofreu cólicas por seis meses, é médico e se especializou em anestesia. É possível que Freud explique. Nossos impulsos vocacionais têm raízes em lugares obscuros da alma. O que não acontece com as escolhas profissionais, que nascem de considerações racionais sobre o mercado de trabalho. É possível que sua vocação de anestesista tenha nascido de suas experiências esquecidas de sofrimento. Aí ele sentiu que seu destino era lutar contra a dor.

A anestesia é uma especialidade modesta. É o cirurgião que executa o grande ato! É ele que é o herói! É o seu nome que é lembrado. É o cirurgião que ganha mais. E, no entanto, enquanto o cirurgião está com sua atenção concentrada no lugar preciso do corpo que ele corta e costura, o anestesista está com sua atenção concentrada na vida adormecida. Ele vigia os seus processos vitais. Ele cuida para que a vida não vacile enquanto o corpo é cortado. Há também as dores da alma que nenhuma cirurgia consegue curar. O medo, por exemplo, não pode ser amputado.

Pena. Porque o medo paralisa a vida. Dominada pelo medo, a vida se encolhe, perde a capacidade de lutar, entrega-se à morte. Animais amedrontados se deixam matar sem um único gesto de defesa. E, pelo que sei, as pessoas têm muito medo da anestesia, medo que chega beirar ao pânico, mais medo que da violência do ato cirúrgico. É que elas têm medo de dormir. Quem dorme está indefeso, à mercê. Quem está dormindo volta a ser criança. As crianças têm medo de dormir. Por isso elas choram, não querem dormir sozinhas, desejam alguém ao seu lado. Alguém que cuide delas enquanto elas dormem. As canções de ninar são para tirar o medo a fim de que o sono seja tranqüilo.

A anestesia pode ser feita de duas formas. A primeira é a anestesia como ato técnico, científico, competente, ato que se executa sobre o corpo da pessoa que vai ser operada. A segunda é igual à primeira, acrescida de um cuidado maternal. O anestesista assume, então, a função do pai e da mãe que cantam canções para espantar o medo. Foi o Sérgio que me contou. Conversamos muito sobre o que fazemos. E como ele se orgulha do que ele faz, ele me conta. Contou-me sobre as visitas aos pacientes amedrontados, às vésperas da cirurgia. Na maioria eram crianças e adolescentes. O objetivo dessa visita é técnico: checar o estado físico do paciente: pressão, coração, vias respiratórias, etc. Mas a pessoa que está ali é mais que um corpo. É um ser humano. Está com medo. Medo da dor.

Medo da morte, pois nunca se pode ter certeza. É preciso espantar o medo para que a vida não se encolha. Mas o medo só sai quando se confia. Não é qualquer pessoa que tira o medo de dormir da criança. Há de ser alguém em quem ela confia. Essa pessoa, e somente ela, tem o poder de cantar uma canção de ninar. O anestesista se transforma então em mãe e em pai: pega no colo a criança amedrontada: diante da cirurgia todos nós somos crianças!

Aparece sempre a pergunta terrível: "Há riscos?" Aí é preciso ser verdadeiro. "Sim, há riscos. Mas os riscos não são do tamanho que você imagina. Você tem medo de andar de carro? Pois os riscos da anestesia são infinitamente menores que os riscos de andar de carro. Pode ficar tranqüilo. Amanhã estarei lá tomando conta de você!" No dia seguinte, na sala de cirurgia, os rostos dos médicos e das enfermeiras cobertos pelas máscaras, ele baixa a máscara, sorri para que o paciente já meio grogue, e diz: " Estou aqui!"

Ele me contou de uma jovem que estava apavorada. O medo era enorme. Não conseguia se tranquilizar. Esgotados todos os recursos maternais, veio-lhe uma iluminação mística. " Você acredita em Anjo da Guarda?", ele disse para a menina. A menina disse: "Acredito." E ele concluiu: "Pois amanhã eu serei o Anjo da Guarda tomando conta do seu sono..." Ela ficou tranquila.