Opinião: Preciso que aqueles que me amam me perdoem
Rubem Alves (1933-2014)
Preciso que aqueles que me amam me perdoem. Que me perdoem porque – preciso confessar – eu me pareço com os esquilos... É. Eu me pareço com os esquilos... Esquilos são animaizinhos deliciosos, com sua longa cauda peluda. Qualquer um gostaria de tê-los no colo e acariciar seu pelo liso. Assentados, eretos, olhinhos assustados, eles seguram as nozes com as mãos e as mordiscam de um jeito que faz lembrar os humanos. Me disseram que eles têm o costume de guardar enterradas as nozes que não comem, com a intenção de comê-las mais tarde, quando os bosques se cobrirem de neve. Me disseram mais, que eles têm memória curta; esquecem-se dos lugares onde guardaram suas preciosas nozes. Pois eu sou assim: guardo coisas preciosas para degustá-las num momento de calma – e depois me esqueço. E elas ficam enterradas em gavetas e caixas até que, acidentalmente, as encontro de novo. Acham que fico alegre? Enganam-se. Fico muito triste. Porque elas não poderiam ter sido esquecidas. As nozes, acho que elas até ficam alegres por terem sido esquecidas. Esquecidas, elas não são comidas pelos esquilos. Quando a primavera volta elas germinam, brotam, nascem e se transformam em árvores. Toda noz quer virar árvore. Mas as coisas preciosas que ficaram esquecidas nas minhas gavetas e caixas não poderiam ter sido esquecidas – porque elas me foram enviadas precisamente para que eu as comesse. Foram presentes de pessoas que me amam, gestos de carinho. E o que elas receberam de mim, em troca do seu gesto, foi o silêncio...
Fui sempre assim, bagunçado. Minha mãe tentou me treinar para a ordem. Inutilmente. Eu mesmo tenho lutado para ser organizado. Encho-me de boas intenções e faço promessas. Mas sou sempre derrotado: depois de uns três dias a bagunça está de novo instalada no meu escritório. Fiquei conformado com a minha incapacidade para a ordem quando, faz uns anos, uma pessoa que me ama sem me conhecer me enviou um presente: um quadro bordado em ponto de cruz com as palavras “Deus abençoe esta bagunça”. Sem me conhecer, como poderia saber? Certamente foi um anjo que lhe disse. E se foi dito por um anjo, não há o que fazer...
Hoje quero pedir perdão a duas pessoas. Para elas, o vento me soprou um versinho que eu gostaria fosse um haikai:
“No escuro da gaveta,
nozes esquecidas,
vozes não ouvidas...”
Vou transcrever partes da carta que uma delas me escreveu:
“Férias de janeiro – não sei de que ano – Antes de ir viajar, procurei nas estantes de livros da minha mãe o livro que seria meu companheiro por alguns dias. Buscava algo poético que não fosse poesia, que não fosse romance (com filhos sabia que não seria possível ler um livro inteiro), que fosse algo que tocasse o fundo da minha alma, que me fizesse também poeta. Encontrei um livro ‘O retorno eterno‘. O livro foi comigo para a praia, ficou na areia, tomou chuva, tomou sol, ficou comigo na rede, me acompanhou na hora de dormir. Quando a gente descobre alguma coisa muito preciosa, deseja que as pessoas que a gente ama também descubram. Foi assim que o Aldo, meu marido, se encontrou com Rubem Alves... Assim que voltei de viagem disse ao meu pai que ele precisava conhecer uma pessoa. Era você. E assim o meu pai conheceu e se apaixonou por Rubem Alves. (10 de novembro de 1999). Meu irmão morreu. 3 dias depois fui a uma livraria. Queria encontrar uma palavra sua para aliviar um pouco a nossa dor. Dei para os meus pais “Concerto para corpo e alma”. Ler ‘O morto que canta‘ aliviava a minha dor. Você falava do meu irmão. Li e reli milhares de vezes. Fico feliz quando vejo meu pai lendo. ...Não sei escrever. Sei pintar. E foi com todo carinho, ouvindo o Adagio de Albinoni – uma das melodias mais tristes e lindas que já ouvi em minha vida... que fiz essa aquarela para você. Com amor. Solange Sandoval 01.09.2000"
Quase um ano! Haverá perdão? E o pior: na carta não se encontra nem o endereço e nem o telefone da Solange. Será que alguém pode me ajudar a encontrá-la?
A outra a quem quero pedir perdão é a Lívia Vezzani Sassi Piraino. Sua carta está datada de 04 de setembro de 2000. Junto com a carta ela me enviou um livro artesanal – lindo – onde ela colocou os resultados de um longo trabalho de garimpagem: aforismos, frases, pitadas de sabedoria - que ela colheu dos livros que leu e transcreveu nos seus cadernos. O jeito que tenho de lhe pedir perdão, Lívia, é compartilhando com meus leitores alguns fragmentos do seu livro. Se você leu minha última crônica você terá percebido que foi da leitura de uma frase do seu livro que ela nasceu: “Tomar uma decisão de ter um filho é algo que irá mudar sua vida inteira de forma inexorável. Dali para frente, para sempre, o seu coração caminhará por caminhos fora do seu corpo.”
1. “Em tempos difíceis em algumas pessoas crescem asas; outras compram muletas.”
2. “Não é a violência de uns poucos que me horroriza; é o silêncio dos muitos” (Martin L. King)
3. “Não é possível mudar a direção do vento, mas é possível ajustar as velas.”
4. “Um homem velho amando é como uma flor que floresce no inverno.”
5. “A preocupação não tira do amanhã os seus sofrimentos mas esvazia o presente da sua força.”
6. “A verdadeira viagem de descobrimento consiste não em buscar cenários novos mas em ter olhos novos.” (Proust)
7. “Simplicidade é fazer a viagem desta vida com o mínimo de bagagem possível” (Charles Warner)
8. “As passagens da Bíblia que me causam problemas não são aquelas que eu não entendo mas aquelas que eu entendo...” (Mark Twain)
9. “Se você deseja ter paz de espírito demita-se da função de administrador geral do universo.”
10. “Universidades são grandes reservatórios de conhecimento. Os calouros trazem um pouco de conhecimento a cada ano. Os formandos, por sua vez, nada tiram de lá. O resultado é que a montanha de conhecimento vai crescendo...”
11. “Uma forma infalível de fazer o seu filho infeliz é satisfazer todas as suas exigências.”
12. Acabo de passar pelo meu jardim. Em meio às plantas compradas em floriculturas e plantadas de propósito estão crescendo outras que ninguém plantou. Nasceram porque nasceram. Algumas, estrelas cor de rosa de cinco pontas, nascem dos trevos. Outras, amarelas, são margaridinhas minúsculas, com menos de um centímetro de diâmetro. E num pé de mato que não sei o que é crescem flores brancas, estrelas também de cinco pontas. Quase invisíveis. Não podem ser compradas em floriculturas. Miniaturas delicadíssimas. Todas nos falam do manancial silencioso de beleza que está em todos os lugares do mundo. O mundo é um jardim florido. Claro: só vêem a beleza aqueles que têm novos olhos. Obrigado Solange e Lívia: a beleza que veio com suas cartas me encheu de alegria.