Crônica: O decreto da alegria

Rubem Alves (1933-2014)

Crônica: O decreto da alegria
‘O Pergaminho’ publica crônicas de Rubem Alves por ter recebido autorização escrita do próprio autor




Menina andou que andou, à procura das tristezas que lhe davam alegria. Deixou o Reino da Alegria para trás. Depois de muito andar, a estrada asfaltada se transformou num caminho de terra estreito, que serpenteava por matas, campos e ribeirinhos... A noite já estava se anunciando e ela ficou com medo. Olhou para o horizonte e lá estava o sol vermelho, colorindo as nuvens. Ela pensou: “Como o pôr-de-sol é triste e bonito! A natureza toda fica tão quietinha! Parece que está rezando...” Ela pensou que no Reino da Alegria as tardes deveriam estar tristes, porque o pôr-de-sol fora proibido. Sem a tranqüilidade do pôr-de-sol as pessoas não se curam da agitação do dia... Nesse momento ela ouviu um sabiá que cantava na mata. Canto solitário. Os sabiás são sempre solitários. A beleza não convive bem com a confusão, falatório e barulho das festas. Aí ela percebeu: “O mundo está tão bonito, tão calmo! Devo estar chegando ao lugar para onde as tristezas fugiram...” O silêncio era grande. Ouvia-se o barulho das folhas das árvores, sacudidas pelos ventos. O gargarejo de um riachinho. A sinfonia dos grilos e dos sapos. Os pios de aves noturnas. É preciso silêncio para ouvir a música da natureza. Sobre os campos, milhares de vagalumes piscavam suas luzes. E ela se perguntou: “O que terá acontecido para que os vagalumes estejam assim tão luminosos?” No céu, bem acima do horizonte, uma grande estrela, enorme, azul. A Menininha ficou fascinada pela estrela. Tinha a impressão de que ela falava. Lembrou-se de um poema que lera na escola em que o poeta falava sobre “ouvir estrelas”... “É, os poetas ouvem coisas que os outros não ouvem...” Nunca havia visto uma estrela assim tão grande. Na cidade havia tantos prédios, tanta fumaça e tanta agitação que não era possível ver as estrelas. Ela não se lembrou de jamais, na cidade, ela e seus pais terem parado para ver os céus estrelados. Mas na terra onde moram as tristezas mansas as estrelas aparecem sempre assim: enormes, lindas, azuis, falantes... Ela sentiu um desejo irresistível de caminhar na direção da estrela. Passou por uma coruja que piava numa cerca, atravessou uma pinguela, parou para deixar atravessar à sua frente um gambá fedido que procurava comida. No meio do caminho tinha uma porteira, tinha uma porteira no meio do caminho tinha uma porteira no meio do caminho tinha uma porteira... Gemeu a porteira ao ser aberta e fechou-se com um ruído surdo ao bater no batente. Havia uma pequena luz na escuridão, luz de lâmpada de óleo e pavio. Era um estábulo com vacas, jumentos, bezerros, ovelhas e carneiros. E, coisa estranha: havia um nenezinho recém nascido deitado num coxo e coberto com palhas. Olhando para o nenezinho ela sentiu uma mistura de ternura e tristeza. Toda criancinha adormecida provoca ternura. Talvez por serem tão indefesas e precisarem de quem as proteja. E toda criancinha adormecida provoca tristeza. Talvez por ser a infância um tempo que logo se acaba...

Foi então que ela ouviu: “Psiu, Menininha!” Era uma voz muito conhecida. A voz repetiu: “Sou eu, a memória da cachorrinha. Estamos todas aqui, eu, a Berceuse de Brahms, a tristeza que vem quando você vê que o seu pai envelhece, e todas as outras tristezas bonitas que foram proibidas pelo decreto do rei tolo. Esse lugar acolhe todas as tristezas e as transforma em beleza. Todas as tristezas que vieram para cá ficaram bonitas...” A Menininha abraçou suas tristezas mansas e começou a rir de felicidade. Que lugar feliz aquele, onde ela não tinha precisão de estar alegre!

Ouvindo o riso da Menininha o nenezinho acordou e começou a rir também. As tristezas não se fizeram de rogadas. Pularam dentro do coxo e começaram a brincar com o menininho, que ria sem parar com as cócegas que as tristezas lhe faziam. Nesse momento um pastor começou a tocar sua flauta doce, ao longe. Era uma música triste e tranquilizante. A Berceuse lhe segredou: “Essa música até que se parece comigo. É triste como eu e dá mansidão ao coração.” Umas crianças começaram a cantar, à volta do pastor. O silêncio era tão grande que se podia ouvir o que elas cantavam ao longe. Algumas tristezas chegaram a pensar que se tratasse de um coro de anjos. E a canção que elas cantavam dizia “Noite de paz, noite de amor...”

No Reino da Alegria era uma grande festa por toda a cidade. As ruas se enchiam de fantasiados mascarados com máscaras sorridentes. Tendo nas mãos seus cartões de crédito e cheques pré-datados as pessoas enchiam as lojas para comprar presentes que mandavam embrulhar com papéis coloridos. O rei, que era muito gordo, fantasiou-se com uma roupa vermelha e saiu pelas ruas carregando um grande saco de onde tirava presentes que distribuía a todos. Comia-se, bebia-se, pulava-se, as serpentinas e os confetes coloriam o ar, todos gritavam e ninguém escutava por causa do som dos trios elétricos. Os fogos de artifício iluminavam o céu, e as suas cores eram tão fortes que não se podia ver a luz quieta das estrelas. E era difícil andar pelas ruas por causa das montanhas de papel que embrulhavam os presentes que nelas haviam sido jogados. Quanto riso, quanta alegria...

Foi quando, de repente, um mascarado vestido de negro tocou um apito e pediu silêncio. Desligaram o som, fez-se silêncio e ele falou:

“Quero ler uma poesia”. Não se tratava de um poeta. Todos os poetas haviam deixado a cidade, junto com as tristezas. Como se sabe os poetas só escrevem poesias quando estão sentindo um pouco de tristeza. Aí ele abriu um livro, deu uma gargalhada e leu o primeiro verso:

“E agora, José?”

Os mascarados, achando que se tratava de uma piada, começaram a gargalhar no mesmo tom da gargalhada com que o mascarado negro iniciara a sua leitura. Aí ele continuou:

“A festa acabou,

A luz apagou,

O povo sumiu,

A noite esfriou,

E agora José?”

Todos pararam de rir. Ele continuou:

“O dia não veio,

O bonde não veio,

Não veio a utopia,

Não veio a alegria,

E tudo acabou...

Com a chave na mão

Quer abrir a porta,

Não existe porta.

Sozinho no escuro

Sem cavalo preto

Que fuja a galope,

Você marcha, José!

José, PARA ONDE?”

O Mascarado Negro terminou a sua leitura, calou-se, misturou-se com a multidão e desapareceu. Foi quando, repentinamente, começou-se a ouvir, por detrás das máscaras sorridentes, um soluçar manso que foi crescendo até se transformar num choro convulsivo que sacudiu a cidade inteira.

Naquele momento, cessados os fogos de artifício que iluminavam o céu, brilhou no horizonte uma estrela azul. Era um brilho bonito e triste. Foi então que perceberam a tolice do rei ao tornar obrigatória a alegria e ao tornar proibidas as tristezas. Porque a vida é feita de uma mistura de alegrias e tristezas. Sem as tristezas as alegrias são máscaras vazias, e sem as alegrias as tristezas são abismos escuros. É por isso que os olhos, lugar dos sorrisos, são regados por uma fonte de lágrimas. São as lágrimas que fazem florescer a alegria. “Aqueles que com lágrimas semeiam com alegria ceifarão”: assim disse o poeta sagrado.

E de repente, sem que ninguém desse ordem alguma, todos tiraram suas máscaras de riso e com os rostos à mostra, molhados de lágrimas, começaram a caminhar, vagarosamente, na direção da estrela...