Crônica: Pianos que nada tocam

Rubem Alves (1933-2014)

Crônica: Pianos que nada tocam
‘O Pergaminho’ publica crônicas de Rubem Alves por ter recebido autorização escrita do próprio autor




Lembro-me do livro de contabilidade do meu pai. Ao lado esquerdo ficava a página do "deve", onde ele anotava os pagamentos feitos, dinheiro que não era mais seu. Ao lado estava a página do "haver", onde se registravam as "entradas", sua pequena riqueza.

Na alma também se encontra um livro de contabilidade. Tanto assim que Vinicius de Moraes escreveu um poema com o título "O Haver". Ele já estava velho e fazia um balanço final do que restara. "Resta" _é assim que cada estrofe se inicia. "Resta essa intimidade perfeita com o silêncio", "Resta esse sentimento de infância subitamente desentranhado", "Resta essa vontade de chorar diante da beleza", "Resta essa comunhão com os sons", "Resta essa súbita alegria ao ouvir na madrugada passos que se perdem sem história".

"O vozerio nas feiras, a música do realejo, o crepitar do fogo nos fogões a lenha: ouvir os sons do mundo é uma felicidade que apenas os artistas têm por nascimento _as outras pessoas precisam aprender".

Quem diria que o som de passos na madrugada poderia ser parte da herança de felicidade de um poeta! Os poetas são seres muito estranhos. Ficam felizes com nada. A poesia se faz com nadas. Bem disse o escritor Manoel de Barros: "Todas as coisas cujos valores podem ser disputados no cuspe a distância servem para poesia. As coisas que não servem para nada têm grande importância".

O poeta português Fernando Pessoa sofria da mesma peculiaridade auditiva de Vinicius. Lembro-me de um verso seu, que não consegui encontrar, que é mais ou menos assim: "Por esse barulho do vento nos meus ouvidos valeu a pena eu ter nascido". Se o verso não foi dele, fica sendo meu, porque eu já tive a mesma experiência várias vezes. Caminhando sozinho no silêncio das árvores o vento me sussurra segredos de felicidades: "Assim a brisa/ Nos ramos diz/ Sem o saber/ Uma imprecisa/ Coisa feliz", escreveu Pessoa.

Ouvir os sons do mundo é uma felicidade que somente os artistas recebem por nascimento _os outros têm de aprender. Para isso há de haver os mestres da escuta. Como o pianista e compositor norte-americano John Cage, que criou uma curiosa peça para piano. É assim: o pianista faz precisamente o que fazem todos os pianistas. Entra no palco, encaminha-se para o piano, assenta-se, regula a distância do banco, concentra-se _e não faz o que todo pianista faz. Ele não toca! Não, não! Não está certo! Eu errei! O pianista toca, sim. Ao piano, ele executa o silêncio. O piano toca uma grande pausa! Cage faz o piano tocar silêncio para que se ouçam os delicados sons do mundo que não seriam ouvidos se o piano tocasse: as batidas do coração, a respiração, o ranger de uma cadeira, uma tosse, um sussurro.

"Há quem não ouça até que lhe cortem as orelhas", disse o escritor alemão Georg Lichtenberg. O não-fazer é a forma suprema de fazer, afirma a filosofia taoísta. Fazer nada é estar à espera. Por isso se aconselha a meditação, que nada tem a ver com a meditação ocidental. A meditação ocidental é falar baixo os próprios pensamentos de uma forma metódica. O piano toca. Mas a meditação oriental é silenciar os próprios pensamentos para que os sons do mundo possam ser ouvidos. O piano não toca. Para que serve isso? Para nada. Não é ferramenta. Não tem utilidade. É coisa da caixa de brinquedos. Só dá felicidade.

O mundo está cheio de música. Há os sons que não existem mais, que estão perdidos na memória. Meu amigo Severino Antônio, poeta de voz mansa, sugeriu aos seus alunos que um passo primeiro para a poesia seria chamar do esquecimento os sons que um dia se ouviram e que não se ouvem mais. A música do realejo, o som do carro de boi, o apito das fábricas e o das locomotivas, o "din-din" dos bondes, o repicar fúnebre dos sinos, o crepitar do fogo nos fogões a lenha, a gaita do sorveteiro, a buzina das charretes.

Parece que a poesia fica guardada nos sons que não mais se ouvem. Há também os sons da cidade: os gritos dos vendedores, o vozerio nas feiras, a algazarra das crianças ao sair das escolas, o bate-estacas das construtoras, os rádios ligados dos trabalhadores, o latido ardido dos poodles. E há os sons da natureza: o assobio do vento, o barulho da chuva, o mantra das cachoeiras, o canto dos pássaros, dos galos, dos sapos, dos grilos (tantos haicais sobre os grilos...), o barulho das ondas.

"Todo homem _até mesmo o rico_ é poeta entre os 15 e os 20 anos. A nova educação deverá fazer do homem um poeta em todas as idades, sem que lhe seja necessário escrever versos. Viver a poesia é muito mais necessário e importante do que escrevê-la", assim disse o poeta Murilo Mendes. Poesia é música. A primeira poesia que se ouve é uma canção de ninar. Depois, é a música do mundo.

"Agora os ouvidos dos meus ouvidos acordaram", escreveu o norte-americano E.E. Cummings. Acordar os ouvidos! Não me consta que essa tarefa tenha sido jamais mencionada em mais tratados sobre a educação. É compreensível. Para isso os professores teriam que ser artistas, pianos que não tocam nada e que só fazem ouvir. Quando isso acontecer, quem sabe, os nossos jovens aprenderão a identificar o canto dos pássaros e ficarão subitamente alegres "ao ouvir na madrugada passos que se perdem sem história...".