Crônica: Sobre a bagunça

Rubem Alves (1933-2014)

Crônica: Sobre a bagunça
O Pergaminho’ publica crô-nicas de Rubem Alves por ter recebido autorização escrita do próprio autor




Era um pacote, embrulhado como presente, que me enviara uma pessoa que eu não conhecia. Pensei, enquanto o abria: “O que é que uma pessoa que não me conhece pode me enviar como presente?” Mas quando acabei o desembrulho, compreendi. A presenteadora adivinhara. Ela me conhecia muito bem. O presente era um quadrinho bordado em ponto de cruz com as palavras “DEUS ABENÇOE ESTA BAGUNÇA”. Dei uma risada e fiquei leve. Foram-se meus sentimentos de culpa... Senti-me perdoado. Pois eu sempre imaginara que bagunça ou era defeito de caráter a ser corrigido ou coisa do Demônio, pecado feio pelo qual se deveria pedir perdão a Deus. Pedir perdão pela minha bagunça eu nunca pedira. Mas havia gasto muitas boas intenções e fracassos tentando curar-me desse defeito que me acompanhava desde os tempos de menino. Mas o quadrinho me libertou desses preconceitos psicológicos e teológicos. “Deus abençoe esta bagunça”. Bagunça é coisa que merece as bênçãos de Deus. Mas Deus não abençoa coisas ruins. Só abençoa coisas boas. Se ele abençoa a bagunça é porque bagunça é coisa boa...

Fui bagunçado desde que me lembro. Bem que minha mãe se esforçou. Deu-me muitos bons e organizados conselhos. Sem resultado. Não é que eu gostasse de ser bagunçado. Eu não queria ser bagunçado, mas a bagunça era mais forte que minhas melhores intenções. Fazia a promessa: “De hoje em diante, um lugar para cada coisa e cada coisa em seu lugar”. Durava um dia. No dia seguinte as coisas já se haviam remexido dos seus lugares sem minha permissão. Que inveja de pessoas organizadas, como o querido colega Carlos Rodrigues Brandão, que não vai para a cama enquanto não guarda todas as coisas nos lugares delas! No dia seguinte é tão fácil: ele quer a coisa, ele sabe onde ela mora. Mas eu, bagunçado, fico perdido à procura das minhas coisas que estão sempre onde não deveriam estar.

Onde foi que a minha bagunça começou? Sei que não foi, por exemplo, por força do meio ambiente, porque o meu pai e a minha mãe gostavam de ver as coisas em ordem. Acho que nasci bagunçado. Tenho uma teoria muito esquisita: a gente nasce como nascem as árvores, de sementes. Semente de pitanga vira pitangueira, caroço de manga vira mangueira, semente de laranja vira laranjeira. É possível fazer várias coisas com a mudinha: adubar, podar, amarrar estacas, proteger do sol, fazer bonsais. Mas o que não é possível fazer é mudar a árvore que está dentro da semente. Acho que a bagunça estava na minha semente.

Há vários tipos de bagunça. Elas não são iguais. Pensando sobre a minha, lembrei-me de experiências da infância. Eu, menino de sete anos, acordava às 5 horas da manhã e pulava da cama. Não é que o sono me faltasse. É que eu achava o mundo tão interessante que não suportava ficar deitado, vendo ele passar. Pulava da cama para viver. E começava a andar pela casa, fazendo barulho, todo mundo dormindo. Ficavam bravos comigo. Mas o que eu queria era acordar aqueles dorminhocos que estavam perdendo as alegrias do viver, dormindo. Porque quem está dormindo está fora do mundo. O meu mundo tinha coisas demais. E eu queria experimentar todas. Daí a minha agitação. Sentia-me como uma borboleta, num jardim... Eu era igualzinho à minha neta Camila... Estava brincando com uma coisa e então, de repente, eu via uma outra que me chamava a atenção. Eu abandonava a primeira e ia atrás da segunda. Aqui, precisamente aqui, está a explicação da minha bagunça. Porque, na pressa de seguir a segunda, eu deixava a primeira do jeito como estava. Ficava lá, fora do lugar, abandonada, bagunçada... Se fosse hoje acho que me levariam a um psicólogo que diagnosticaria hiperativismo. Mas, que podia eu fazer? Eu não era hiperativo. O mundo é que era hiperinteressante. Como podia eu ficar indiferente às infinitas provocações do mundo? O mundo me deslumbrava. Tanta coisa dentro de mim! Era preciso contar aos outros, que não tinham percebido. Aí eu desandava a falar. Não era compulsão, doença. O que eu queria era despertar os adultos de sua monotonia e chatice – para que vissem o mundo que eu via. Falava tanto que, certa vez, meu irmão mais velho, o Ismael, me ofereceu uma pratinha de dois mil réis para ficar cinco minutos sem falar. Por dez tostões eu não me calaria. Era barato demais. Mas dois mil réis era uma riqueza! Aceitei. Fiquei cinco minutos sem falar. Mas aquela proposta me indignou. Como? Comprar o meu silêncio? Então os adultos não estavam interessados nas coisas maravilhosas que eu tinha para falar? Passaram-se os cinco minutos. Ele me deu a moedinha e disse: “Pode falar.” Mas eu embirrei. De raiva não falei. Fiquei mudo. E isso assustou sobremaneira os circunstantes porque pensaram que algo grave havia acontecido com minha fala e que havia o perigo de que eu ficasse mudo definitivamente. Imploraram que falasse. Eu não falava. Então o Ismael me ofereceu outra pratinha de dois mil réis para falar. Então falei...

Não mudei. Continuo do mesmo jeito. A árvore bagunça continua a mesma, crescida. Agora vejo coisas que não via quando menino. Estou escrevendo. Meus pensamentos fazem-me lembrar de um parágrafo num livro. Paro de escrever. Levanto-me. Procuro o livro. Encontro o texto. Volto para a cadeira. Faço as anotações necessárias. Mas, no meio das anotações, eis que surge outra idéia. As ideias andam rápidas. Muito mais rápidas que as coisas. Voam. Preciso segui-las para não perdê-las. Vou atrás do outro livro. Não há tempo para colocar o primeiro de volta no seu lugar. Deixo-o sobre a mesa. E assim vai. Com as minhas idéias não há problemas. Posso deixá-las quando quiser porque elas, por conta própria, voltam para os seus lugares. Mas os livros não se movem por conta própria. Ao final do dia a desordem é total. Fico irritado. Um sargento que mora no meu albergue me diz que antes de deixar o escritório é preciso colocar os livros nos seus lugares. Aí eu tranco o sargento na sua cela. Não é possível obedecê-lo. Há outras coisas mais importantes que demandam minha atenção e ação: cuidar do jardim, dos peixes, fazer sopa, responder alguns dos 715 e-mails que me esperam, ir à Floríssima...

Espicaçado pelo “DEUS ABENÇOE ESTA BAGUNÇA”, comecei a procurar justificativas para isso que parecia defeito de caráter ou pecado.

Lembrei-me de um livro de Kurt Goldstein (não pude procurá-lo porque o emprestei para alguém que não o devolveu; isso é parte da minha bagunça: não anotar os nomes de quem pede livros emprestados...), que fez pesquisas sobre distúrbios de comportamento em pessoas que haviam tido seus cérebros lesados durante a guerra. Um dos distúrbios me fascinou. Havia um tipo de ferido que não suportava qualquer bagunça, por menor que fosse. Se o entrevistador colocava o seu caderno torto sobre a mesa, ele logo o colocava nos ângulos retos. Se a posição da cadeira desobedecia a simetria, ele tratava de arrumá-la. Kurt Goldstein oferece a seguinte explicação para esse comportamento fascinante, que os observadores desavisados interpretariam como virtude: as pessoas de posse de suas funções intelectuais normais são capazes de conviver com a bagunça do lado de fora porque a sua mente as coloca em ordem, no lado de dentro. Mas aquelas pessoas que haviam sofrido aquele tipo de lesão cerebral haviam perdido esse poder organizativo interno. Se o mundo de fora estivesse bagunçado, o seu mundo interno estaria bagunçado também. Daí a compulsão para manter o mundo de fora organizado.

Aí meu pensamento bagunçado, que não marcha em linha reta, anda aos pulos, saltando de pico em pico, lembrou-se de um aforismo de Nietzsche: “Digo-lhes: é preciso ter caos dentro de si mesmos a fim de dar à luz uma estrela dançante. Digo-lhes: vocês ainda têm caos dentro de vocês.”

Então é do caos que nasce a ordem? Perguntem aos astrônomos que dizem que esse universo maravilhoso e ordenado em que vivemos surgiu de um Big-Bang, uma explosão colossal, acontecida há cerca de treze bilhões de anos. Pois Nietzsche, sem saber do Big-Bang, sabia que as estrelas nascem do caos... Do caos nascem coisas nunca pensadas. Da marcha ordenada do pensamento só nascem coisas que existiam antes. Quem diz isso não é um doido. É Thomas Kuhn, filósofo da ciência...

O que combina poeticamente com os mitos bíblicos da Criação: “No princípio a terra era sem forma e vazia e um vento impetuoso, furacão, soprava sobre a superfície das águas.” Era o caos. E do caos surgiu um jardim, Paraíso...

Concordo, porque é da minha bagunça que surge a minha literatura...