Crônica: A noite

Crônica: A noite
Rubem Alves (1933-2014)




Minhas netas: Vocês já devem ter notado que os adultos estão assustados. Começaram a falar uma palavra que nunca falaram antes: “Apagão”. Parece que o tal de “Apagão” é um monstro terrível, quem sabe um E.T. malvado, vindo do planeta Mongo. Parece que o tal monstro “Apagão” chega através da eletricidade, pois eles, os adultos, começaram a apagar lâmpadas, desligar televisão, implicar com banhos demorados. Eles estão com medo. A notícia é que, quando o “Apagão” chega, todas as luzes da cidade se apagam. Tudo fica escuridão. Uma coisa é o escuro sabendo-se que basta apertar um botão para que a luz apareça. Outra coisa é o escuro sem remédio: não adianta apertar o botão do interruptor porque o escuro continua escuro. Já imaginaram a noite sem luz, sem televisão, sem jeito de ler, sem barzinho, sem festa, as ruas escuras, a cidade no escuro? Medão...
Lá na roça onde eu morava quando era menino, na casa de pau-a-pique, fogão de lenha e “casinha” do lado de fora, havia muitos fantasmas. Eu mesmo nunca vi nenhum. Mas os grandes haviam visto e contavam casos de lobisomem, mula-sem-cabeça, saci e almas do outro mundo. Num dos seus livros Monteiro Lobato conta muitas estórias sobre eles. Eu acreditava e tinha medo. Mas nunca ouvi falar nesse tal de “Apagão”, que apaga todas as luzes. A razão para isso eu explico: para haver um “Apagão” é preciso que antes tenha havido um “Acendão”. O “Acendão” acende tudo, liga tudo: lâmpadas, geladeira, chuveiro, televisão, forno de microondas, tocador de CD, secador de cabelo, torradeira, máquina de fazer café, forno elétrico, aquecedor... O “Apagão” é o fantasma que desliga e apaga o que o “Acendão” ligou e acendeu. Mas lá onde eu morava, na roça, não havia eletricidade. Não havendo eletricidade não havia “como” acender. E não havia “o que” acender. Não havendo o “Acendão” não havia o perigo de acontecer o “Apagão”.
A gente tinha de aprender a conviver, com o escuro, com a noite.
O sol ia baixando, chegando perto da linha do horizonte – noite chegando. Essa chegada da noite tem o nome de “crepúsculo”. Crepúsculo é uma hora mágica. Parece que a natureza toda pára. É triste e bonito. Cecília Meireles, que vocês já devem ter lido, na escola – se não leram, é porque há algo de errado com a sua escola – escreveu um lindo poema em que ela diz que o crepúsculo é “quando começa o cansaço dos homens, quando os pássaros têm uma voz mais longa, já de despedida. Declina o sol – esta é a notícia que a terra sente, na floresta e no arroio...”
Durante o dia a passarinhada voa doida, alegre, em todas as direções, procurando insetos distraídos. Quando o crepúsculo chega o seu vôo fica diferente: eles voam numa única direção: querem voltar para a casa. Vocês já viram os patos selvagens voando em formação de “V”, ao final da tarde, conta o céu azul? É bonito. Eu sempre me perguntava: “Quem foi que ensinou os patos a voar daquele jeito?” Acho que ninguém sabe a resposta. Há muitas perguntas para as quais não há respostas. E as galinhas, que durante o dia inteiro só olham para o chão, ciscando à procura de bichinhos, ao cair da tarde voltam para o galinheiro, sua casa. Seu bisavô, meu pai, gostava de observá-las espichando os pescoços, ensaiando o vôo para um galho de árvore ou um pau do poleiro. Elas sabem que a noite é perigosa. O escuro é perigoso. A noite é o tempo quando os bichos da noite saem de suas tocas, bichos que têm olhos de enxergar no escuro e gostam de comer galinhas...
O escuro da noite! Do lado de fora da casa a gente podia olhar em todas as direções: não se via uma única luz. Breu. Quando o tempo estava bom, o céu negro aparecia iluminado por milhares de estrelas. Nas cidades as luzes ofuscam a luz das estrelas. Nas cidades, o mistério do universo, que nos faz pensar e nos torna mais sábios, é trocado pelo besteirol da televisão. (Se “Apagão” é o nome do fantasma do escuro, eu batizo de “Besteirão”, um fantasma que sai da televisão e se apossa das pessoas sem que elas percebam...). Quem pára para ver o céu? Eu era pequeno mas o céu estrelado já me causava assombro. Como foi que ele começou? Uma grande mancha de luz branca atravessava o céu. É a Via Látea. Quantas estrelas! Milhões? Bilhões? (Na roça havia uma superstição. Diziam que contar as estrelas com o dedo apontado fazia nascer verrugas...). Via Látea quer dizer “Caminho de Leite”. Os gregos antigos explicavam esse nome dizendo que aquela mancha aparecera quando um jato de leite esguichou do seio de uma deusa! Talvez eles tenham razão. O leite da mãe é sempre uma luz no escuro da noite. Por isso os nenezinhos dormem, sem medo, enquanto mamam...
Havia também a luz da lua. Nas noites de lua cheia os campos e as matas ficavam iluminados. Me diziam que a lua era morada de São Jorge em luta diária com um dragão. Por que é que São Jorge não matava logo o tal dragão, pondo fim à luta diária? Acho que se ele matasse o dragão ele iria se sentir muito sozinho. O dragão era sua única companhia... Se ele ficasse sem o que fazer, sozinho, na lua, o pobre São Jorge ficaria louco! Há uma canção que é parte da alma dos brasileiros mais velhos, aqueles que não nasceram nas cidades, composta por Catulo da Paixão Cearense. Ela fala do luar: “Não há, ó gente, o não, luar como esse do sertão!” Acho que você gostaria dela. Peça para sua mãe ou sua professora lhe ensinar a cantar.
De vez em quando, uma estrela cadente aparecia e rápido riscava o céu com a sua luz, para logo desaparecer. Diziam que eram mágicas; o primeiro desejo que se tivesse, depois de vê-las, seria realizado.
E havia, também, sobre os campos negros de escuridão, a luz dos vaga-lumes. Centenas, milhares: brilhavam, como estrelas, acendendo e apagando suas luzinhas. Eu me admirava que houvesse bichinhos voadores que carregavam lanternas no seu traseiro... Ainda hoje não me explicaram esse mistério: um bicho que tem, como parte do seu corpo, uma lanterna. Haverá perigo de apagão para os vaga-lumes?
A casa era também escura. Não havia eletricidade nem lâmpadas. Era preciso acender as lamparinas que queimavam querosene com um cheiro forte, enchendo o ar de fuligem. Ou velas. As velas nos ensinam uma lição: para brilhar é preciso morrer. As velas, à medida que iluminam, vão morrendo. A cera dura fica mole com o calor, derrete-se e escorre, como se fossem lágrimas. E, por fim, a vela se reduz a um toquinho, até que se apaga definitivamente. Quem contempla a chama de uma vela, queimando, fica tranqüilo e sábio...
Sem luz elétrica, sem rádio e sem televisão – a noite era uma hora tranqüila. Um amigo me contou que na cidade em que morava quando menino eram freqüentes os “apagões”. A cidade ficava às escuras. E pasmem: ele ficava feliz! No escuro o seu pai acendia uma vela, punha a vela sobre a mesa e ele, o pai e a mãe jogavam baralho e conversavam. O pequeno “apagão” fazia com que eles estivessem próximos de um jeito que não acontecia quando a luz elétrica estava acesa. A luz da vela provoca intimidade. Ela aproxima as pessoas.
O melhor lugar era a cozinha. Lá havia o fogo do fogão de lenha, o café, o bolo de fubá, a pipoca. Quando fazia frio meu pai punha uma bacia cheia de brasas no chão e nós nos assentávamos à volta das brasas. Tudo escuro, apenas os rostos avermelhados pelo vermelho das brasas. A gente tirava os sapatos e esticava os pés na direção do fogo...
Os adultos contavam histórias. Histórias de “antigamente”, do “tempo do onça”, dos tempos quando se amarrava cachorro com lingüiça... Histórias de quando eram pequenos, de viagens, de bichos, de onças, de cobras, de macacos, de almas do outro mundo, histórias engraçadas, histórias de dar medo, histórias de fazer chorar.
A mãe pegava a cestinha de cerzir meia, com agulhas, linhas e ovo de madeira. Não sabem o que é cerzir meia? Naqueles tempos o dinheiro era pouco. Nada podia ser desperdiçado. Hoje, quando a meia fura, joga-se fora. Naquele tempo elas eram cerzidas. Cerzir é tecer com agulha e linha para tapar o buraco da meia. E, para que essa tecelagem ficasse mais fácil, punha-se dentro da meia um ovo de madeira. Quando não havia meias a cerzir, as mulheres faziam crochê, tricô, bainha...
Quando já estava tarde da noite, lá pelas oito horas, tomava-se leite com farinha de milho, ou leite com goiabada mole. Era hora de ir para a cama. Cobrir as brasas do fogão com cinza, para que estivessem vivas pela manhã. Apagar as velas. Apagar as lamparinas. Escuridão de sertão. O cri-cri dos grilos, os pios das corujas, o barulho da água no monjolo, o barulho dos ratos correndo nas madeiras do telhado. Hora de medo. Por isso, ao ir para a cama, era preciso rezar. Minha mãe me ensinou a rezar assim: “Agora me deito para dormir. Guarda-me ó Deus em teu amor. Se eu morrer sem acordar, recebe a minh’alma, ó Senhor. Amém.”
Dica
Se me fosse dado dizer um único verso, esse seria o que eu diria: “No mistério do Sem-Fim equilibra-se um Planeta. No Planeta, um jardim. No jardim, um canteiro. No canteiro, uma violeta. E na violeta, o dia inteiro, entre o mistério do Sem-Fim e o Planeta, a asa de uma borboleta...” (Cecília Meireles). Eu gostaria de ter sido jardineiro, paisagista, Burle Marx. Quem planeja e planta jardins espalha amostras do Paraíso. Não fui paisagista. Mas a minha filha Raquel está realizando esse sonho meu. Ela é paisagista. Não é preciso um grande terreno para se ter um jardim. Há jardins lindos que se fazem nas janelas e nas varandas. Plante um pequeno Paraíso na sua casa! Você ficará mais feliz.

‘O Pergaminho’ publica crônicas de Rubem Alves por ter recebido autorização escrita do próprio autor