Crônica: Sobre a pipoca estourada que virou piruá

Rubem Alves (1933-2014)

Crônica: Sobre a pipoca estourada que virou piruá
‘O Pergaminho’ publica crônicas de Rubem Alves por ter recebido autorização escrita do próprio autor




Hoje minha conversa é com você, adulto, que não vai mais à escola porque já tirou diploma. Está formado. Você se lembra da sua formatura? Por falar em formatura, lembrei-me de um artista goiano que não tirou diploma mas ficou artista (artista não precisa de diploma) e foi convidado por uma turma para ser paraninfo. Ficou apavorado porque fazer arte ele sabia mas não sabia fazer discursos, especialmente discurso segundo as etiquetas da academia. Procurou o auxílio de um amigo, reitor da universidade, implorou que ele lhe escrevesse o tal discurso. Negado o seu pedido, o artista resolveu fazer uma pesquisa: entrevistou várias pessoas já formadas para saber o que, no discurso do seu paraninfo, mais o impressionara. O resultado da sua pesquisa foi surpreendente: nenhum dos entrevistados tinha a menor ideia do que o paraninfo havia falado. Assim, munido desse saber, no dia da formatura ele se levantou perante o público ilustrado de professores, pais e formandos, e no seu jeito de quem não sabia falar a língua própria, contou dos resultados da sua pesquisa. E concluiu: "Como vocês não vão se lembrar mesmo do que vou falar, quero só dizer que não vou falar nada. Só quero que vocês sejam muito felizes." Falou três minutos e foi delirantemente aplaudido. Do seu discurso ninguém se esqueceu. Voltando à sua formatura, festança, pais sorridentes, o futuro do filho está garantido, eles já têm permissão para morrer, discursos, diploma na mão. Você está formado. Formado: saído da fôrma. Para isso você passou todos aqueles anos na escola, para se com-formar, ficar igual à fôrma. Sua educação está completa.

É com você, formado, educação completa, que quero conversar. Estou com medo de que você pare de ler o que escrevo, e não há coisa que mais horrorize um escritor que não ser lido.

Primeiro, quero dizer uma coisinha sobre essa coisa de ser escritor. Lindo, o filme de Almodóvar, "Tudo sobre minha mãe". Vá vê-lo sem perda de tempo. Me identifiquei com o filho, jovem que sonhava ser escritor. Não se separava do seu caderno de anotações - e nisso somos iguais. Tenho sempre comigo o meu caderno. Meu caderno é a minha "gaiola de prender idéias". Porque as idéias são entidades fugidias, pássaros. Elas vêm de repente e desaparecem tão misteriosamente como chegaram. Não se pode confiar na memória. Se as idéias não forem presas com palavras escritas no papel elas serão esquecidas. Não sei se foi o filho ou a mãe que falou sobre a maldição de escrever. Isso mesmo: maldição. Quem foi enfeitiçado pela literatura está perdido para sempre. As imagens não dão descanso. Aparecem sem pedir licença em qualquer lugar, em qualquer tempo, na cama, no banho, caminhando, viajando, apossam-se do pensamento, dançam, atormentam, seduzem, pedem para serem escritas. Aparecem como iluminações súbitas - foi assim que me apareceu a idéia da "pipoca" - "flashes" fotográficos, cada uma delas completa em si mesma, bela, fascinante, tentadora. Pedem que eu lhes dê visibilidade para que os outros também brinquem com elas. Bem que eu gostaria de atender ao pedido delas. Mas sei que não terei tempo: as imagens se sucedem com rapidez incontrolável mas o escrever é vagaroso. Quem tenta atender ao seu pedido está perdido: logo se perde em meio à multiplicidade das imagens, cada uma delas puxando numa direção. E ficam então como meninos que correm inutilmente atrás dos pássaros.

As idéias são infinitas mas o tempo é finito. Não é possível escrever tudo o que se deseja. É preciso, então, um ato de disciplina consciente, algo a que se poderia dar o nome de "ética do escrever": é preciso, em meio às 10.000 imagens que seduzem, responder à pergunta: o que é essencial?

Para mim o essencial é a educação. Pensava assim também Hermann Hesse que dizia que, de todas as questões públicas, a única que lhe interessava era a educação. Um dos seus livros mais fascinantes, O jogo das contas de vidro, é a estória de um grande artista que havia chegado ao topo da fama e que, já velho, descobriu que a única coisa que desejava era educar um menino, um único menino, que ainda não tivesse sido deformado pelas escolas. A velhice tem esse poder de nos fazer voltar ao essencial, pois é na velhice que se dá conta de que "tempus fugit". No pensamento de Hesse educação e escola eram palavras que não se davam bem... A "educação formal", precisamente porque ela "en-forma", tem o resultado de "de-formar". Um ser humano "formado" é "deformado". Toda fôrma é fechada. "Formar" é fechar. Mas o propósito da educação não é fechar: é abrir.

Assim, escrevo sobre educação: porque amo as crianças, os jovens, seres ainda abertos, que enfrentam o perigo de serem "formados". E amo as pessoas adultas, "formadas": quero "desenformá-las". Nesse sentido, o educador é um destruidor de formas. E o meu medo de perdê-lo como leitor tem a ver com isso: por já haver tirado o seu diploma e por se julgar já formado você poderia supor que o que escrevo não tem a ver com você: literatura para professores e alunos. E, assim, você continuaria imperturbado dentro do seu piruá.

Educar é mostrar a vida a quem ainda não a viu. O educador diz: "Veja!" - e ao falar, aponta. O aluno olha na direção apontada e vê o que nunca viu. O seu mundo se expande. Ele fica mais rico interiormente. E, ficando mais rico interiormente, ele pode sentir mais alegria e dar mais alegria - que é a razão pela qual vivemos. Vivemos para ter alegria e para dar alegria. O milagre da educação acontece quando vemos um mundo que nunca se havia visto.

Neste sentido, a educação não tem fim, porque a vida é infinita. Leonardo Da Vinci, já bem velho, comentava que o extraordinário da vida é que vamos aprendendo até o fim. (Sobre Da Vinci a IBM fez um maravilhoso vídeo que ela bem que poderia emprestar para as escolas. Acho que há mais sabedoria na vida de Da Vinci que nos computadores...). Educação não é o domínio de uma soma de conhecimentos. Conhecimentos podem ser mortos e inertes: uma carga que se carrega que não serve para nada e que nem dá alegria: casca dura de piruá. Quando o conhecimento é vivo ele se torna parte do nosso corpo: a gente brinca com ele e sente feliz no brinquedo. A educação acontece quando vemos o mundo como um brinquedo, e brincamos com ele como uma criança brinca com a sua bola. O educador é um mostrador de brinquedos...

O Cecílio, amigo querido, veio me visitar, faz uns dias. Conversa vai, conversa vem, ele me contou sobre a sua empregada - ou governanta de sua casa - mulher madura, de poucas palavras, sempre séria e compenetrada. Pois um dia, precisando sair, o carro pifou justo na hora em que o marido dela tinha vindo buscá-la, ao final do dia de trabalho. Ele lhe ofereceu uma carona no seu carro que não era dos mais novos, oferecimento que o Cecílio alegremente aceitou. Antes da partida o marido tirou um CD de dentro de uma caixa e o colocou no toca-cds. O Cecílio se preparou para ouvir uma dupla sertaneja, música que não se afina bem com o seu gosto. Mas logo veio a surpresa e o seu rosto se encheu de espanto. O marido, percebendo o espanto, explicou: "Pois é, a minha mulher acabou gostando daquelas músicas que o senhor escuta o dia inteiro. Curiosa, ela foi ver o nome: Vivaldi... Agora, a gente anda de carro ouvindo Vivaldi...Como é bonito" . O Cecílio, sem querer e sem saber, educou. Na verdade, ele não educou. Foi a governanta que se educou. Estava aberta. Acolheu o novo. E ficou transfigurada, mais bonita, mais rica. E acabou por educar o marido, que também começou a brincar com a música de Vivaldi. Agora, dentre as alegrias que eles tinham, eles tinham uma outra, que nunca haviam experimentado e nem aprendido nas escolas. É, nas escolas não se ensina a gostar de Vivaldi...

As crianças nascem pipocas arrebentadas: estão abertas à infinita variedade do mundo. Mas há sempre o perigo de que depois de "formadas" elas se tornem piruás...Qual é o seu caso?