Opinião: Meu pai

Rubem Alves (1933-2014)

Opinião: Meu pai
‘O Pergaminho’ publica crônicas de Rubem Alves por ter recebido autorização escrita do próprio autor




Gabriel Garcia Marques escreveu um conto assombroso – sobre um afogado desconhecido que transformou uma aldeia de pescadores. Estranho isso, porque homens mortos não falam. Estão mergulhados no silêncio. Como pode o silêncio de um morto transformar os vivos? É que do silêncio dos mortos surgem vozes – para aqueles que amam e sabem escutar. Somente o amor escuta as palavras que não foram ditas. Um amigo me enviou uma carta que escreveu para o pai morto. Mortos lêem cartas? É possível que não. Mas mortos fazem os vivos pensar e escrever. A carta me comoveu muito. Pedi, então, permissão para transcrevê-la. Mas pode ser que sim. Se o pai morto leu a carta, estou certo, ele riu de felicidade...

 

“Meu Pai: No primeiro momento, após a notícia que você tinha atirado em si mesmo, senti imensa raiva de você. Como podes pretender cortar a tua dor à custa da dor dos que quis deixar! Se não pôde suportá-la, porque não a dividiu com os que te amam?

 

Chegando à chácara, pelo desespero de minha mãe, constatei que a tragédia havia se consumado. Como que se eu já não soubesse durante todo o percurso. Relutei para te olhar. Preferi estar ao lado do corpo vivo da vítima, que via parte importante da sua vida esvair-se de maneira tão súbita e dolorosa. Preferi deixá-lo coberto do lençol improvisado para não registrar na memória o retrato de tão trágico evento.

 

Aos poucos, talvez pelo dever de filho mais velho, talvez pela vergonha da minha covardia, percebi que teria que, pela última vez, enfrentar-te. E descobri seu rosto...seu corpo...

 

Fiquei perplexo. Não havia cadáver algum. Você estava inteiro. Como quem apenas repousava. Do semblante forte, sereno e inexplicavelmente iluminado emanava, de maneira eloqüente, aquele seu magnetismo que é traço de sua personalidade, suprimindo milagrosamente as marcas que o tempo lhe deixou.

 

Senti a sua força como talvez desde criança não me lembrava de ter sentido. Como se estivesse sábia e serenamente protegendo a mim e a todos nós.

 

De repente me senti seguro e feliz... como quando ganhei aquele par de botas gaúchas (me lembro que dormi com elas naquela primeira noite pra acordar e já ir cedinho para a fazenda com você!). O Zeca, como dizem no sul, estava ali, mais vivo e presente do que nas últimas vezes que o vi.

 

Sou atropelado por um turbilhão de lembranças. Quase que instantaneamente as razões da sua última escolha explodiram na minha frente. Era lógico e evidente que este haveria de ser o caminho escolhido por você...

 

Lembrei-me que durante toda a minha vida, desde onde minha memória consegue enxergar, temi pela sua vida. Cada noite que você se atrasava, eu ficava acordado, com os ouvidos atentos aos barulhos da Av. Indianópolis, temendo que alguma tragédia pudesse ter lhe ocorrido. Sua coragem e valentia se por um lado me envaidecia - qual menino não gostaria de ter um pai do estilo John Wayne? - por outro me assustava.

 

Lembro-me quando um marginal andava por espreitar a mesma casa da avenida Indianápolis, pelo terreno baldio dos fundos, para atirar na sua ex-namorada, jurada de morte, que trabalhava na casa. Você não chamou a polícia. Deu a volta por traz do quarteirão, agarrou o bandido por trás tomando-lhe a arma. Não o entregou a polícia e deixou claro que o ajuste de contas seria com você se ele voltasse ao bairro. Nunca mais apareceu...

 

Incontáveis vezes nós presenciamos peões e todo o tipo de homens rudes e perigosos encolherem-se como crianças ante a sua presença. O único que ousou lhe enfrentar o fez traiçoeiramente de emboscada, sem sucesso.

 

O fato é que mesmo sendo uma das pessoas mais cultas, inteligentes e corteses que conheci, jamais transigiu a nada que pudesse macular sua honra e sua ética, dentro da mais ampla definição que estes verbetes possam encontrar em qualquer compêndio. O custo desta defesa, nunca esteve em questão. Poderia ser a vida, como tantas vezes inconsequentemente (hoje já não sei se penso assim...) pôs em jogo, como o de seu Patrimônio.

 

Seu espírito caudilho, que é traço marcante de todos os seus catorze irmãos, nunca o permitiu ser humilhado ou dominado por qualquer situação.

 

Foi assim com os dois infartos. Você os tirou de letra. Largou incontinente os quatro maços que fumava por dia e o hábito ancestral da carne vermelha diária, o que para um gaúcho escarrado não é nada fácil. As duas ou três horas de exercício diários nutriam sua vaidade de ter aos 78 melhor condição física do que tinha aos 40. Foi assim com a perda de seu patrimônio ou de tantos outros revezes que jamais derrubaram sua altivez.

 

Havia entretanto algumas coisas das quais você não podia se privar pois eram partes de sua vida como a água é dos peixes.

 

A mais importante era sua ligação com o campo, com a natureza. Por maior que fosse seu interesse pelos livros, pelas obras que escreveu, pela cátedra ou doutorado, você nunca conseguiu se afastar dela. Sempre fez de cada fazenda, por mais longínqua que pudesse estar, o seu jardim, a sua querência. Mesmo morando em São Paulo, talvez por 30 anos entre idas e vindas, você jamais se deixou paulistanizar. Passava invariavelmente a maior parte do seu dia na chácara, seu pedaço dos pampas aqui em São Paulo.

 

Aí veio a sua cegueira... Não de uma vez, mas irreversível e crescente ao longo dos últimos anos. A primeira vítima foi a leitura, seu vício mais sagrado. Depois o volante. Ultimamente já sabia que não poderia mais fazer suas caminhadas vigorosas pela manhã. No mês passado foi o braço. Quebrado e com todos os ligamentos da mão direita rompidos, com a provável limitação do uso deste membro.

 

Naquela manhã, horas antes fora o nariz, quebrado noutro tropeço na calçada. O mais grave porém acho que foi o assalto que você sofreu na última semana na chácara, quando ao esboçar uma reação involuntária, foi ameaçado de morte ante o clique do gatilho da arma e do marginal que você não conseguia sequer enxergar.

 

O seu mundo desabou...Urrou aos ventos, ofendido como uma fera acuada, que iria tocar fogo em tudo.Que não pisaria de novo naquele lugar. Pela impossibilidade de sequer se defender no seu recanto, que há muito já era sabidamente perigoso.

 

Que jugo o destino lhe reservara! Recolher-se voluntária e humildemente ao cárcere do apartamento e da “segurança” das grades. À dependência inexorável da esposa e dos amigos. Tranformar-se num ente obediente, querido e cordato mais ou menos como o animal de estimação dos familiares.

 

Seria mais fácil pedir aos leões que pastassem ou aos cavalos que voassem...

 

Você nunca se deixou humilhar. Não seria o destino que ousaria tal façanha.

 

...E decidida e corajosamente abateu a este com um tiro certeiro no coração.

 

Bem ao estilo gaúcho. Bem ao seu estilo.

 

Pai, quero lhe falar, que por mais que sua falta me doa, eu o admiro mais ainda e como nunca antes possa ter lhe admirado. No fundo mesmo, estou muito orgulhoso da sua corajosa decisão de assumir as rédeas da sua saída, podendo deixar para trás seus 78 anos vividos tão intensamente à sua maneira.

 

Ergo as mãos para acenar meu adeus, porque sei pelo seu semblante, que já está de volta aos pampas. Cavalgando ao seu estilo, cuidando do jardim e conversando com os animais...

 

Eu cuido do pessoal por aqui.

 

Siga em paz. Zé.”