Crônica: Um caminho científico de combate à corrupção

Rubem Alves (1933-2014)

Crônica: Um caminho científico de combate à corrupção
‘O Pergaminho’ publica crônicas de Rubem Alves por ter recebido autorização escrita do próprio autor




Jonathan Swift, autor de “As viagens de Guliver”, é um dos meus deleites literários. Encantam-me a sua percepção do mundo, as suas sutilezas e o seu humor. Mas ele já conhecia o velho ditado que diz: "Em terra de cegos quem tem um olho tem a cabeça decepada..." A verdade pode ser muito perigosa. Assim, para que os poderosos não se ofendessem com o que ele descrevia e mandassem cortar a sua cabeça, escrevia como se tudo passasse em países distantes e ilhas desconhecidas.

Lewis Carroll deve ter aprendido dele. A loucura da rainha (aquela que no julgamento do roubo das tortas gritava "A sentença primeiro, o julgamento depois... ") não era a loucura da rainha da Inglaterra. Era a rainha do país de mentirinha, ou rainha do jogo de xadrez ou rainha do baralho, que vivia no País das Maravilhas, no fundo do buraco do coelho que não largava do seu relógio...

No livro “As Viagens de Gulliver”, o navio do herói aportou no país de Lagado, notável por suas universidades e instituições de pesquisa científica. Nesse país ele se assombrou com uma pesquisa, a que se dedicava a Faculdade de Política, a pedido do soberano. O rei estava temeroso de que houvesse, entre os parlamentares, alguns que planejassem um golpe militar que o tirasse do trono.

Como identificar esses inimigos da ordem estabelecida, se eles, como todos os conspiradores, trabalhavam secretamente? Foi essa a pergunta que o rei fez aos cientistas da Faculdade de Política. Eles responderam: "É fácil Majestade. Basta que se façam, periodicamente, análises das fezes dos parlamentares. As intenções da alma se acham reveladas nos seus excelentíssimos cocôs. É no cocô que se encontra a somatização da sedição." 

O rei ficou encantado com sugestão e deu àquela Faculdade fundos generosos e sem limites para que a pesquisa fosse levada a cabo.

Guliver, viajante, continuou a sua viagem e não soube dizer dos resultados da pesquisa. Mas imagino que foram negativos. O insucesso da pesquisa se deveu, ao meu juízo, não a um equívoco da teoria mas a um engano dos cientistas: a sedição não é somatizada no cocô; ela é somatizada na bílis verde. O que é somatizado no cocô é a corrupção. Isso só ficou demonstrado por Freud, séculos depois, que mostrou que, simbolicamente, cocô = dinheiro. Assim, chega-se ao caráter de uma pessoa, se é corrupta ou não, através da análise de suas fezes e dos seus hábitos escatológicos.

Em primeiro lugar analisa-se o cocô em si mesmo: consistência, cor, cheiro, volume. A seguir analisam-se os hábitos da pessoa em questão tais como posição, expressões fisionômicas, freqüência, se lê ou não jornais enquanto obra. Essa análise permite ao médico concluir se os cocôs que analisa provém de um corrupto ou não.

Um ilustre congressista brasileiro mostrou ao povo, através da televisão, uma pilha de documentos - cerca de uma tonelada - que teriam de ser analisados, um a um, para se chegar à conclusão sobre a corrupção de um parlamentar. Isso levaria meses, se não anos. Mas a vida pública não pode esperar tanto tempo. Lembrei-me então da teoria dos cientistas do país de Lagado e pensei que ela poderia ajudar-nos a rapidamente purificar nossas instituições políticas.

Um procedimento semelhante a esse, aplicado aos nossos congressistas, evitaria a demora das intermináveis sessões de interrogatório e de pilhas de documentos a serem lidos. O resultado do exame de fezes simplesmente anunciaria: "O Departamento de Escatologia Política, havendo analisado as fezes do excelentíssimo (nome do parlamentar), chegou à seguinte conclusão...

Seguir-se-ia a conclusão de "corrupto" ao "não corrupto". Tomar-se-iam então as providências legais cabíveis cientificamente justificadas. Teríamos então uma política limpa garantida pela objetividade da ciência.