Crônica: Absurdo!

AC de Paula (de São Paulo)

Crônica: Absurdo!
AC de Paula é dramaturgo, poeta e compositor




Boris meticulosamente passou a flanela no par de sapatos, cujo brilho preto cadilac era um verdadeiro espelho. A sola de couro porém já estava bem gasta. Com o mesmo zelo escolheu o par de meias pretas, a camisa de um branco imaculado, o terno azul marinho e a gravata vermelha com figuras geométricas azuis.

Há tempos cumpria essa mesma rotina. Eram seis horas quando chegou na fila que se estendia por dois quarteirões. A crise estava brava, havia muitas pessoas de idades, sonhos, motivos e necessidades diversas, alguns já conhecidos de filas anteriores.

- Olá Boris, você por aqui? Cumprimentou a moça que parecia querer ofuscar o brilho da sua beleza em um vestido sem graça, a cara limpa sem maquiagem, e os cabelos em desalinho.

- Bom dia, Bia! disse Boris, alegre por revê-la. - Ainda na batalha da procura?

- Ainda meu amigo, um dia ainda vou deixar de ser uma garota do book-rosa!

Por volta das nove horas, quando precisou atender a um chamado da natureza, passou por um ex-jogador de futebol que apesar do seu talento não conseguira chegar a um lugar de destaque, a concorrência era grande e não muito democrática, por isso tornara-se um craque na arte de procurar emprego.

Embora cada um, guardadas as devidas proporções, fosse de certa forma concorrente do outro, a demora e a ansiedade da espera, o sofrimento e as agruras comuns dos desempregados, os fazia solidários, e eles faziam amizades e trocavam as figurinhas do desalento enquanto esperavam, era uma necessidade para não se desesperar.

Quando Boris enfim entrou na sala para a entrevista o relógio digital na parede acima da entrevistadora marcava quase 15 horas.

- Boa tarde!

- Boa tarde, senhor Boris! Respondeu a entrevistadora com uma voz quase sensual.

- Há quanto tempo o senhor está procurando emprego, senhor Boris?

- Há três anos mais ou menos.

- Incrível, com toda essa qualificação que consta no seu currículo?

- Pra senhora ver, não está fácil pra ninguém.

- Senhor Boris, o senhor tem algum problema em cumprir ordens?

- Houve um tempo que eu tinha, mas acabei acreditando que MANDA QUEM PODE E OBEDECE QUEM TEM JUIZO.

- Isso não seria uma adaptação comportamental para conseguir uma vaga?

- Talvez, na verdade eu adotei a tática de um camaleão e danço conforme a música, respeito as diferenças e não questiono ordens nem julgo comportamentos.

A entrevistadora subiu pela parede, devorou um inseto que ficara preso na sua teia e voltou ao seu lugar.

- Senhor Boris, me diga uma virtude sua que o faria merecer preencher essa vaga na empresa.

- Bem, eu diria que é o fato de eu ser uma pessoa muito discreta.

- Muito bem senhor Boris, pode passar no RH, o senhor começa na segunda-feira!