Crônica: Ano novo, vida nova

Rubem Alves (1933-2014)

Crônica: Ano novo, vida nova
‘O Pergaminho’ publica crônicas de Rubem Alves por ter recebido autorização escrita do próprio autor




Minha mãe me contou que a cada dia 1º de janeiro, ano novo, a família inteira reunida para o café da manhã, minha avó profetizava solene: “Ano novo, vida nova”. Isso acontecia todo ano. Mas o fato de minha avó repetir sempre a mesma profecia a cada 1º de janeiro significava que a profecia do ano anterior não se cumprira. As profecias de vida nova nunca se cumprem. Continuamos os mesmos a despeito da passagem do tempo e de nossas intenções mais honestas. Passadas as festas a alma retorna ao seu pequeno curral, o pequeno curral de sempre. A alma vive prisioneira numa gaiola de mesmice assombrosa.
Antigamente os médicos prescreviam viagens aos seus clientes deprimidos. Viajar é mudar de cenário, sair de um espaço e entrar em outro: da casa fechada e monótona para as praias luminosas, da cidade barulhenta e agitada para os cenários bucólicos das montanhas! Que alma agitada não se tranquiliza ao contemplar as vacas que pastam mansamente? As vacas nunca se apressam. Nem mesmo quando cai a chuva: continuam a pastar como se nada estivesse acontecendo. As almas das vacas são tranquilas. Os médicos pensavam que mudando os cenários de fora os cenários de dentro mudariam também! O terrível livro de Thomas Mann Morte em Veneza é sobre um homem que viaja para Veneza para se curar. Talvez esta seja a razão por que ao início do ano todo mundo quer viajar. Por que se vai a Porto Seguro, ao Arraial da Ajuda, a Trancoso? Para se curar de ser paulista, de ser urbano, de ser estressado, da ditadura do relógio. Quem sabe nas praias da Bahia acontecerá uma ressurreição do amor e mesmo do desejo! Ser contagiado pelo jeito dos baianos que, como as vacas, jamais se agitam e estão sempre de bem com a vida! Viajar é mudar, renovar-se! Não poder viajar é vergonhoso! Coisa humilhante é ter de ficar!

Imagino que o Bernardo Soares, um dos heterônimos do Fernando Pessoa, consultando um médico sobre a sua depressão (ah!, pobre Bernardo! Vida mais besta, escriturário por profissão, todo dia no mesmo escritório anotando números em livros de contabilidade, fazendo as mesmas coisas, andando na mesma rua!), tenha recebido como receita conselhos de viajar. Mas ele sabia melhor que os médicos. Não viajou. E anotou no seu Livro do Desassossego: “Quem cruzou todos os mares cruzou somente a monotonia de si mesmo. Que me pode dar a China que minha alma me não tenha já dado? E, se minha alma mo não pode dar, como mo dará a China, se é com a alma que verei a China, se a vir? Poderei ir buscar riqueza no Oriente, mas não riqueza de alma, porque a riqueza de minha alma sou eu, e eu estou onde estou, sem Oriente ou com ele. Não vemos o que vemos. Só vemos o que somos. Nunca desembarcamos de nós...” É isso aí: nunca desembarcamos de nós, nem mudando de ano e nem mudando de cenários. E assim vão as pessoas viajando e fotografando, com os seus olhos que não mudam, olhando todas as coisas sem ver nada de novo, vendo apenas aquilo que trazem dentro de si mesmas. E a prova de que não viram nada está nas fotografias que trazem, as mesmas caras, as mesmas coisas, os mesmos sorrisos felizes (quem está de férias tem de estar feliz), a mesma banalidade. Cada fotografia é fotografia da alma daquele que a tirou. Não adianta mudar de tempo ou de espaço porque somos seres engaiolados e levamos nossas gaiolas por onde quer que vamos. Sempre vemos o mundo através das nossas grades.
A ilusão de que o réveillon marca o início de um “novo tempo”: “Ano novo, vida nova.” Se não fosse por isso, por que as festas?. Infelizmente os astros que marcam o tempo são indiferentes às nossas festas tolas. Giram os astros infinitamente e a vida continua igual. “Espumas e brumas, tudo são espumas e brumas”, disse o sábio sagrado. “Uma geração passa, outra lhe sucede, mas a terra continua a mesma. O sol se levanta, o sol se deita, o vento sopra em direção ao sul e gira para o norte, girando, girando...Todos os rios voltam para o mar e ao fim do seu percurso voltam a correr o mesmo percurso. O que foi, será; o que sucedeu, sucederá; nada há de novo debaixo do sol.” Eliot escreveu sobre isso: giram os astros marcando a passagem do tempo, mas o giro dos astros não nos torna mais sábios.
A Áquila paira no topo dos Céus
O Órion, com seus cães, percorre o seu circuito.
Ó giro perpétuo de estrelas fixas,
Ó eterno retorno das mesmas estações...
Os giros dos céus em vinte séculos
Levam-nos para mais longe de Deus e
para mais perto do pó.
Mas eu bem que gostaria de mudar... Sou como a minha avó: todo ano me digo: Ano novo, vida nova. Faço minha lista de boas intenções: fazer ginástica, caminhar, meditar... Meditação oriental, não ocidental. Para os ocidentais meditar é encher a cabeça de pensamentos. Para os orientais meditar é esvaziar a cabeça de pensamentos. Parar de pensar. É possível? Para quê? Eu explico. Ontem à noite fui me deitar, estava muito cansado, e coloquei um CD de James Galway, flauta, para tocar bem baixinho. Entre as peças se encontram a Serenata, de Schubert, um noturno de Chopin, La plus que Lente, de Debussy, e a ária das Bachianas Brasileiras n. 5, de Villa-Lobos. Para que eu realmente escutasse essas peças seria preciso que minha cabeça estivesse silenciosa como uma sala de concertos. Nenhum pensamento estranho que fizesse barulho. Um pensamento estranho, misturado com a música, produziria uma colisão. Assim, propus-me entregar-me totalmente ao ato de ouvir que, por sua vez, exigia que eu silenciasse meus pensamentos. Caso contrário eu não ouviria direito. Mas os pensamentos, malditos, não obedeciam às minhas ordens. Eles insistiam em entrar em cena e fazer barulho. Essa é a razão por que Alberto Caeiro dizia que pensar é estar doente dos olhos. No meu caso, pensar é estar doente dos ouvidos. Por vezes os pensamentos são uma doença. Os orientais sabem que para se estar tranqüilo é preciso parar de pensar, para se estar totalmente atento ao mundo. Pois eu quero aprender a arte de parar de pensar a fim de ter a felicidade de ver, ouvir, sentir. (Você já notou que, nas viagens, as pessoas não param de falar? Elas não conseguem desembarcar de si mesmas...). Prometo, ao início do ano, que vou dar tempo à felicidade da meditação, como parte do meu programa de vida nova. Prometo também ter mais tempo para os meus amigos, trabalhar menos, vagabundear sem dores de consciência.
Mas, infelizmente, eu não sou livre. “Querer é poder”: essa é uma das maiores mentiras jamais inventadas. Muitas pessoas morrem afogadas embora seu único desejo seja chegar à terra. O apóstolo Paulo se dizia miserável porque não conseguia fazer o que queria e fazia o que não queria.
Eu acredito em demônios. Não esses demônios que grunhem como porcos, cheiram a enxofre e, a se acreditar nos crentes, são os responsáveis pelas nossas desditas. Esses demônios são muito feios e todos querem se livrar deles. Os demônios em que acredito são outros. Muito mais sutis. O que é um demônio? Um demônio é um poder que me obriga a fazer uma coisa que não quero fazer. E desses demônios o meu corpo está cheio. Moram no meu albergue. Têm a minha cara e o meu cheiro. Eles se valem da minha distração e me arrastam. E o que é que eles fazem comigo? Eles me fazem fazer o que sempre fiz. Eles me obrigam a continuar a ser sempre o mesmo. Eles são a gaiola que não me deixa voar. O Amilcar Herrera, professor sábio que ficou encantado, me confessou que o seu grande desejo era acordar um dia esquecido do seu próprio nome. E me explicou: “Quando sei que sou Amilcar Herrera, sou obrigado a fazer aquilo que o Amilcar Herrera sempre fez. Mas se eu me esquecer que sou Amilcar Herrera então serei livre para viver a vida e experimentar o mundo como se fosse pela primeira vez.” Somente haverá vida nova se tivermos a graça de esquecer o que fomos sempre. É preciso morrer para nascer de novo: essa é uma lição do evangelho e da poesia. Alberto Caeiro dizia que ele queria raspar a tinta com que o haviam pintado, inclusive o seu nome, para que ele visse o mundo como uma criança acabada de nascer.
As cigarras passam a maior parte de suas vidas debaixo da terra, alimentando-se das raízes das árvores. Disseram-me que há certas espécies de cigarras que chegam a viver 15 anos debaixo da terra. De repente, alguma coisa acontece, e surge dentro delas um impulso irresistível para mudar. Saem então dos seus túneis, sobem pelas troncos das árvores, arrebentam suas cascas, subterrâneas gaiolas, e se transformam em seres alados. Se elas não abandonarem suas cascas não se transformarão em seres alados. Continuarão a ser seres subterrâneos. Nossos demônios são nossas cascas. Abandonar as cascas é esquecer a forma subterrânea de ser.
A grande transformação das cigarras acontece quando a morte se aproxima. É a proximidade da morte que lhes diz: “Chegou a hora de voar, cantar e fazer amor, para continuar a viver...” Fecundam e morrem.
Eu acho que a morte é o único poder capaz de nos trazer vida nova. A consciência da morte nos força a sair de nossas sepulturas, nos dá asas, nos convida a voar e a amar.
Afinal de contas, o que é o réveillon? É a celebração da passagem do tempo. E a passagem do tempo nos diz que mais um pedaço da vida se foi e que estamos mais perto da morte. Se se faz tanta festa e barulho é porque temos medo da passagem do tempo. Não queremos ouvir sabedoria da morte. O que é uma pena. Porque se a ouvíssemos, teríamos vida nova.