Crônica: Coitado do corpo...

Rubem Alves (1933-2014)

Crônica: Coitado do corpo...
O Pergaminho’ publica crônicas de Rubem Alves por ter recebido autorização escrita do próprio autor




Conheci um professor de educação física que defendia a tese de que atle-tismo faz mal à saúde. E argumentava: "Você conhece algum atleta longevo? Quem vive muito são aquelas velhinhas sedentárias que tomam chá com bolo no fim da tarde..." Quando ele me disse isso pela primeira vez lembrei-me logo de minha mãe. Antigamente a medicina tinha ideias científicas diferentes. Ah! Como as opiniões da ciência são volúveis! Pois o que os cientistas diziam na-queles tempos é que é preciso economizar energia. Baseavam-se em evidentes analogias tiradas das máquinas (hoje os cientistas continuam a usar o modelo da máquina para entender o corpo humano).
Primeiro a analogia do desgaste: carro que anda demais fica velho logo. Funde o motor. Ninguém quer comprar carro que já virou o velocímetro. Quem se movimenta demais logo gasta as juntas e músculos. O melhor é ficar na rede. E há a analogia do combustível: se o carro rodar muito o combustível acaba. Mas se ficar na garagem o combustível não acaba. Vida é combustível. Tem limite. Quem vive muito intensamente corre o risco de morrer mais cedo. O melhor é ficar paradão. Meu tio, que era médico, sentenciava: "Nunca fique em pé quando puder ficar sentado; nunca fique sentado quando puder ficar deitado." Minha mãe seguiu rigorosamente o conselho do irmão. Morreu aos 93 anos.
Essas memórias me vieram quando li a notícia de que Florence Griffith Joyner havia sido fulminada por um infarto. Corpo fantástico, só músculos, a mulher mais rápida do mundo, detinha há dez anos os recordes mundiais dos 100 e dos 200 metros. Deveria ter 140 de colesterol, coração com músculos de ferro - impossível que fosse morta por um infarto. Mas foi.  
O sentido original da palavra “stress” pertence à física, no campo da me-cânica aplicada. O seu objetivo é determinar a resistência de um material - o que é de fundamental importância na construção de pontes, edifícios, aviões. Para se determinar a resistência de um material é preciso submetê-lo a “stress” isto é, a forças, até o ponto dele se partir. Tomo um tijolo, coloco-o numa prensa e submeto-o a pressões. O ponto em que ele se partir será o seu limite. Tomo um fio de náilon e vou aumentando o peso que ele tem de suportar. O momento em que ele se partir será o seu limite.
O atletismo é a aplicação, sobre o corpo humano, das técnicas de “stress” para se determinar a resistência dos materiais. O treino do atleta tem por obje-tivo aumentar a sua resistência. A competição por objetivo determinar o ponto além do qual ele não consegue ir. Há os testes de força e compressão (os halte-rofilistas), de elasticidade (saltos de todos os tipos), de velocidade, de resistên-cia (por quanto tempo o corpo agüenta?). Os recordes estabelecem a perfor-mance máxima do corpo submetido a stress máximo. A competição é essencial ao atletismo porque é só através dela que se podem fazer comparações. Com-paro vários materiais para determinar sua resistência a um tipo de stress. Com-paro vários atletas por meio da competição para ver qual deles tem o melhor desempenho quando submetido ao stress máximo. O corpo da Florence Grif-fith Joyner não agüentou. Arrebentou como um fio arrebenta se seu limite é ultrapassado. Se o atletismo é isso a tese do professor de educação física a que me referi acima está plenamente justificada. O que move o atleta não é o prazer da atividade, em si mesmo. Se assim fosse, ele ficaria feliz em correr, nadar, saltar, sem precisar de comparar-se com outros. Mas depois de correr ele con-sulta o seu relógio. Está comparando o seu desempenho em relação aos outros. Quando a gente se envolve numa atividade por prazer a gente está brincando. Não olha para o relógio. É o caso das crianças correndo - como potrinhos. Ou na água: como golfinhos. O espaço, representado pela grama, pela água, pelo vazio, é o seu companheiro de brincadeira. A atividade lúdica produz um cor-po feliz.
A competição, representada no seu ponto máximo pelas Olimpíadas, é o oposto do brinquedo. Porque ela só acontece quando o corpo é levado ao li-mite do stress. E o corpo, mais sábio que os atletas, não gosta disso. Ele sabe que é perigoso chegar aos limites. O corpo não gosta de competições e Olimpí-adas. Competições e Olimpíadas são situações a que o corpo é submetido ao máximo stress. Ou seja, situação de máximo sofrimento do corpo. O corpo vai contra a vontade. Basta observar a máscara de dor no rosto dos que competem. A competição é uma violência a que o corpo é submetido. A imagem mais ter-rível que tenho dessa violência é a daquela corredora suíça, ao final de uma maratona, algumas olimpíadas atrás. Chegando ao estádio o corpo dela não aguentou. Os ácidos e a cansaço o transformaram numa massa amorfa assom-brosamente feia. Ele não queria continuar; desejava parar, cair. Mas isso lhe era proibido: uma ordem interna lhe dizia: obedeça, continue até o fim. O pú-blico parou, perplexo. E ninguém podia ajudá-la. Se alguém o fizesse ela seria desclassificada. O comentarista, comovido, louvava o extraordinário espírito olímpico daquela mulher. Ele não compreendia o horror. De fato, o final do espírito olímpico é o corpo levado aos limites últimos de stress. Aos limites do sofrimento. Como o corpo escultural de Florence Griffith Joyner. Haverá coisa mais anticorpo, mais anti-vida? A competição não é motivada por amor ao corpo e ao seu prazer. Na competição o espaço não é companheiro de brinca-deira, é inimigo a ser derrotado. O prazer de quem compete não se encontra na relação corpo-espaço, mas no resultado: quem teve a melhor performance. O objetivo da competição é a comparação. E a comparação é o início da inveja e da infelicidade humana.
O atletismo não é uma atividade natural. Animais não competem. Ne-nhum tem interesse em saber qual é o melhor.
Eles não se comparam. Animais correm por prazer: cães e cavalos correm e pulam por prazer. Mas quando não estão brincando, isto é, quando não estão envolvidos no prazer da atividade, eles não fazem esforços desnecessários. Os movimentos dos animais são determinados por um estrito senso de economia. Só existe uma situação quando competem: onça e veado, gavião e coelho - quem perde ou morre ou fica com fome. O que não é o caso das pistas de atle-tismo.
E me intrigam as razões por que, nas competições, são apenas os múscu-los que são testados. O corpo não é formado apenas por músculos. O curioso é que quando se fala em "educação física" a imagem que aparece é a de um atleta com short, camiseta e tênis, pronto para alguma atividade que envolva o uso dos músculos. Mas os olhos, os ouvidos, a boca, o nariz, a pele são também parte do físico. Podem também ficar atrofiados como ficam atrofiados os mús-culos. O corpo atrofiado pela inércia e pelo acúmulo de gordura pode terminar em obesidade, diabetes, colesterol alto e infarto. Mas um corpo de sentidos atrofiados termina numa doença terrível chamada "tédio". Imagino uma facul-dade de educação física que tenha também cursos do tipo "Curso de cheiração avançada I", "Curso de cheiração avançada II, "Curso de observação de cores", "Curso de audição de ruídos da natureza"...