Crônica: A Lagoa

Rubem Alves (1933-2014)

Crônica: A Lagoa
‘O Pergaminho’ publica crônicas de Rubem Alves por ter recebido autorização escrita do próprio autor




Quero convidar vocês a irem comigo numa excursão. Eu serei o guia. Uma excursão é, antes de mais nada, uma experiência com os sentidos: ver cenários desconhecidos, ouvir sons incomuns, sentir perfumes novos, experimentar comidas estranhas, deixar que a pele sinta o sol, o frio, o vento. Não se vai a uma excursão para pensar. Não se trata de concordar ou discordar. Trata-se, simplesmente, de experimentar, com o corpo. Antes de partir para uma excursão todos deveriam ler, como devoção diária, os poemas de Alberto Caeiro: "O mundo não foi feito para ser pensado mas para ser visto e para se estar de acordo."

Quero levar vocês a passear pelo meu mundo, com o auxílio da psicanálise. Mas, para isso, é preciso desaprender e esquecer aquilo que vocês sabem a respeito dela. Perder a memória. A memória não deixa ver direito. A memória perturba os olhos.

Quero que vocês se esqueçam de que psicanálise é terapia. Quero que vocês se esqueçam das palavras que normalmente se usam quando a conversa sobre psicanálise aparece: identificação, transferência, repressão sexual, ego, id, super-ego, psicanalistas, divãs, honorários. A psicanálise não começa com essas palavras. A psicanálise é, antes de mais nada, um jeito de ver o corpo. E o mais fascinante: ela acredita que, dentro do corpo há um universo mais fantástico, mais incrível, mais maravilhoso, mais terrível, mais misterioso que o universo que existe do lado de fora. A ficção científica nos leva em viagens até os confins do universo. A psicanálise deseja fazer algo parecido: nos levar a viajar pelos confins da alma. A alma é maior que o universo astronômico. A psicanálise é um roteiro de viagem.

São muitos os olhos que vêem o corpo. E cada olho o vê de maneira diferente.

A medicina, por exemplo, tem muitos olhos. São tantos que o certo seria falar em medicinas, no plural. Os olhos dos cirurgiões não vêem o corpo da forma como os clínicos gerais vêem. Se você for a um homeopata ele lhe fará perguntas que um clínico jamais faria. A medicina chinesa, por sua vez, vê tudo de outro jeito. Quando você opta por um tipo de médico e recusa os outros é porque você não quer que o seu corpo seja visto com os olhos daqueles que você rejeitou. Que curioso: na escolha de um médico está presente uma filosofia!

As religiões também, todas elas, são maneiras diferentes de ver o corpo. As religiões cristãs vêem o corpo através dos olhos da culpa. O corpo, no mundo cristão, se encontra sempre sob a observação do Grande Olho que nada deixa escapar. Já no Taoísmo não há nenhum Grande Olho. O Taoísmo não sabe o que é culpa. Para o Taoísmo o corpo é um pequeno barco que vai navegando levado pelas correntes de um grande rio. Para o cristianismo o corpo não é digno de confiança. Precisa ser reprimido. Para o Taoísmo o corpo é sábio e precisa ser ouvido. Num, corpo devedor, títulos sob protesto. Noutro, corpo navegador, sem contas a pagar.

Que coisa mais estranha! É certo que existe um mundo sólido, material, físico. Mas nós nunca o vemos. O que vemos são os mundos que moram dentro dos nossos olhos. Duvida? Pergunte a Kant.

A psicanálise é um olho através do qual se vê um mundo diferente de todos os demais. Não foi a psicanálise que descobriu esse mundo. Ele já tinha sido visto por místicos, poetas e artistas desde tempos imemoriais. Eles viram e o tornaram sensível através da pintura, da escultura, da música, dos poemas, das canções, das catedrais, da culinária, das obras literárias. O gênio da psicanálise está em que ela descobriu que as obras de arte são mais que obras de arte: são entradas para o mundo da alma. Um sonho: protótipo de todas as obras de arte!

Existe uma enorme diferença entre a experiência da arte, de um lado, que é essencialmente emocional, e a crítica da arte, do outro, que é essencialmente racional. Ler no jornal de hoje a crítica do concerto de ontem de forma alguma me comunica a emoção que se teve ao ouvir o concerto ontem. Ler a crítica da exposição das obras de Dali não me comunica a emoção que foi possível ter estando diante dos seus quadros. Além da pura experiência estética há a experiência de pensar: o corpo de Dali esteve na mesma posição em que está o meu corpo, agora, diante do seu quadro... A experiência com o belo é uma experiência de possessão. A beleza faz-se uma com o corpo, o corpo "vira" obra de arte. Mas a experiência com a crítica só mexe com a cabeça. Não é emoção. É pensamento.

A psicanálise vê o corpo como uma obra de arte. Uma obra de arte encarnada. Parodiando o evangelho que diz "o Verbo se fez Carne", eu digo "o Belo se fez Corpo"... Mas a sua relação com este Belo encarnado é a mesma relação que existe entre a crítica racional e a experiência emocional. A psicanálise, como teoria, é um exercício racional que investiga as "razões", o sentido humano que se encontra nas raízes dessa obra de arte encarnada. Mas as emoções estão em outro lugar.

Eu só sei pensar por meio de metáforas. Metáfora é uma imagem que não é a coisa mas que me ajuda a ver a coisa. Dizia o carteiro a Neruda: "Sou um barco batido pelas ondas." Claro, ele não era, literalmente, um barco. Mas quem ouvisse as suas palavras entenderia perfeitamente bem o que ele estava dizendo. Assim, aqui vai minha primeira metáfora para o mundo pelo qual vamos viajar. Você sabe mergulhar? Trate de aprender...

À nossa frente, a lagoa imensa. Nem uma brisa encrespa sua superfície lisa. Nela aparecem refletidas, invertidas, as coisas do mundo de fora: chorões, com seus longos galhos, altos pinheiros, os papiros com suas cabeleiras despenteadas, as nuvens brancas navegando o azul do céu, as garças em seus vôos harmoniosos. Lagoa, espelho, onde tudo cabe. Vez por outra, um peixe salta inesperadamente, para logo desaparecer, deixando ondas que se espalham em círculo pela superfície do lago. Um súbito encrespar da superfície anuncia a passagem de um cardume invisível. Por vezes, uma simples barbatana corta a água, revelando a presença de um grande peixe. E, perto das margens, bolhas estouram na superfície, vindas das funduras escuras. Assim é o lago, visto de fora. Mas se o observador for curioso e não tiver medo, ele poderá mergulhar. E os seus olhos verão então um outro mundo que da superfície não se podia ver: mansos peixes coloridos, plantas aquáticas, traíras e piranhas vorazes, barcos apodrecidos, restos de naufrágios, e todo tipo de formas que do lado de fora não podiam ser vistas. Um mesmo lago: de fora uma coisa, nas funduras outra.

Os místicos, poetas e artistas desde muito sabem que o corpo é um lago: na superfície lisa está espelhado o mundo de fora. Mas basta atravessar o espelho com um mergulho (não se assuste com essa imagem de atravessar o espelho. A Alice, do livro de Lewis Carroll, fez isso, e o espelho não se quebrou. Derreteu. Dê-se o prazer de ler Alice no País das Maravilhas e Através do Espelho. Carroll era um guia maravilhoso no mundo da psicanálise, antes mesmo que ela existisse. Não se engane. Não são livros para crianças...) basta atravessar o espelho com um mergulho para se chegar a um mundo que existe no avesso do corpo, que do lado de fora não se vê, estranho, totalmente diferente. Escher colocou esses dois mundos num desenho genial a que ele deu o nome Ar e água. Note os gansos voando. Eles são negros contra um fundo branco. Observe o que acontece nos intervalos, à medida que os olhos vão descendo. Começam se delinear formas de peixes. Até que, mergulhando na água o fundo é negro; aparecem os peixes, enquanto os gansos vão desaparecendo nos intervalos. Está aqui representado, num simples desenho, o estranho mundo que os místicos e artistas viram e que a psicanálise tenta compreender. Nós mesmos: seres alados que voam no mundo luminoso, seres subaquáticos que nadam num mundo misterioso...