Crônica: Proseando

Rubem Alves (1933-2014)

Crônica: Proseando
‘O Pergaminho’ publica crônicas de Rubem Alves por ter recebido autorização escrita do próprio autor




1. Eu ia indo, guiando meu carro, de Pocinhos do Rio Verde para Caldas, lá em Minas, quando vi, ao longe, na estrada, um bando de crianças que caminhava pelo acostamento. Chegando mais perto, pelo jeito delas, concluí que eram escolares. Sorriam, naquela manhã de sábado, como se estivessem indo para um piquenique. Crianças felizes. Eram pássaros livres. Chegando ainda mais perto tive uma explosão de alegria. Comecei a rir. Acenei para elas. Elas acenaram para mim. Percebi o que estavam fazendo: traziam sacos nas mãos e estavam catando o lixo acumulado à beira da estrada. Isso de catar lixo nas manhãs de sábado não está nos programas. E também não cai nas provas. Mas elas estavam fazendo aquilo que, talvez, elas já soubessem: que é preciso cuidar do mundo em que vivemos. Talvez soubessem, mas as inúmeras obrigações curriculares não lhes deixavam tempo livre para fazer o essencial. Tanto assim que aquilo que estavam fazendo era num sábado... Isso é sinal de esperança. Acho bom!

 

2. Sou formado em teologia e penso que, frequentemente, tenho idéias teológicas legais. Tanto assim que as escrevo. Se não as achasse legais não as escreveria. Uma delas se caracterizou (verbo no passado, porque faz tempo que a tive) por sua absoluta originalidade. Digo isso sem pudor algum porque não sei de nenhum teólogo que a tenha tido antes. Nem mesmo o terrível Ratzinger, que ameaça cortar a língua e os dedos de todos os que não jogam “Boca-de-Forno” com ele. Foi uma proposta que fiz ao Papa. Uma nova e revolucionária encíclica. Por meio dela seria criada uma nova ordem monástica, ao lado das incontáveis que já há: a “Ordem dos Cata-Lixo”. Isso mesmo. Hoje, catar lixo é uma virtude teologal. Imaginei, teologicamente, que o diabo mudou de tática. Antigamente, segundo testemunho dos entendidos, ele se especializava em tentações sexuais. Pensava que, assim, iria bagunçar a criação de Deus. Mas não deu muito certo porque o sexo, freqüentemente, está associado ao amor. E sendo associado ao amor é coisa bonita, que Deus aprova com um sorriso discreto. O diabo, especialista em excrementos e ventilações sulfúricas malcheirosas, percebeu que a maneira mais fácil de acabar com o mundo que Deus criou seria submergi-lo em fezes. E está sendo bem sucedido. Prova disso é a quantidade inacreditável de lixo que a civilização capitalista produz diariamente. Faça as contas: um quilo de lixo por habitante diariamente. Multiplique pelo número de habitantes do mundo. E multiplique pelos dias do ano. Você terá a quantidade de lixo que nossa civilização higiênica (higiênica, sim; a quantidade de produtos de limpeza que se encontra nos supermercados é assombrosa; e basta apertar um botão para que as coisas feias e malcheirosas que estavam dentro da privada desapareçam, tudo ficando limpinho, cheiroso e bonito de novo...) produz por ano. Concluí, com firme fundamento teológico, que o lixo são as fezes do demônio que quer transformar o Paraíso que Deus criou num grande lixão. Concluí, logicamente, que uma das formas modernas de lutar contra o Demo é lutar contra o lixo. Daí a necessidade da criação da “Ordem dos Cata-Lixo” – que seria bem recebida por todas as pessoas. Os membros dessa ordem sairiam diariamente pelas ruas, praças e estradas catando lixo e pregando a nova mensagem: “Arrependei-vos e catai lixo para que o inferno não venha... “Sugeri também que as penitências, normalmente medidas em rezas que Deus não precisa ouvir de novo por já as ter ouvido bilhões de vezes as mesmas, fossem transformadas em sacos de lixo. Os pecados, sobejamente conhecidos pelos seus prazeres – todo pecado dá prazer; se não desse não haveria tentação – seriam traduzidos em quantidade de sacos de lixo. (Os marxistas entenderão o que estou propondo se eu disser que se trata de uma simples transformação de valores de uso em valores de troca...). Por exemplo: mentir para o imposto de renda = 01 saco de lixo; masturbação = ½ saco de lixo; gula = ½ saco de lixo; mentir para um amigo = 10 sacos de lixo; infidelidade conjugal = 10 sacos de lixo; roubalheira de senador = para esse crime não há penitência; é pecado sem perdão; o senador-pecador vai direto para o grande lixão do Diabo chamado inferno. Terá de comer lixo por toda a eternidade, junto com os urubus... Acho uma pena que o Papa não tenha acolhido a minha sugestão.

 

3. Choveu. Manhã fresca. Fui caminhar. Passei pela praça sem nome que há, espremida entre as ruas Clóvis Bevilcqua e José do Patrocínio. Em tempos idos ela era leito da estrada de ferro que ligava Campinas a Barão Geraldo. É uma praça com tipuanas velhas de troncos rugosos e murtas de flores brancas perfumadas. Está triste, abandonada. Não fiquei com raiva da prefeitura. Pensei, ao contrário, que as praças pertencem àqueles que têm a felicidade de morar perto delas. Esse sentimento, de que a rua é continuação da casa, acontecia quando eu era menino. As pessoas, ao entardecer, punham cadeiras nas calçadas e se assentavam para papear, enquanto as crianças brincavam na rua. Hoje isso ainda acontece nos bairros mais pobres. Em condomínio, jamais! Imaginem moradores de condomínio colocando cadeiras de vime na rua! Esse ato revelaria origens que devem ser escondidas! Pensar que o cuidado das praças e dos jardins é responsabilidade da Prefeitura (afinal de contas, foi para isso que elegemos o prefeito e pagamos impostos!) – eu considero uma negação da cidadania. A cidadania nasce de uma relação de afetividade entre o morador e o espaço urbano que o cerca. Dica para os educadores: não falem em cidadania. Cidadania é conceito abstrato. Não evoca nenhuma imagem. Não pode despertar amor. Falem de coisas que podem ser vistas e imaginadas. Essa praça desemboca na Escola Estadual “Prof. Aníbal de Freitas”. O cuidado dessa praça poderia ser um projeto ambiental dos adolescentes que nela estudam. O projeto poderia começar simplesmente como catação de lixo. Às segundas-feiras, de manhã, no caminho para a escola, a moçada iria catando lixo seletivamente: latinhas de alumínio, garrafas de plástico, papel... Desafio aos professores: organizar os temas curriculares a partir do lixo: literatura, matemática, ciências, geografia, história do lixo! (Maravilhoso projeto de pesquisa!), política, saúde, economia, ética, ecologia... Se os professores não se mexerem, sugiro que os alunos tomem a iniciativa. E a catação de lixo iria se transformando em jardinagem...

 

4. Continuo a ser perturbado pela visão da praça do Castelo. Quem planejou aquela praça não gostava de plantas, não gostava de pássaros, não gostava de sombras, não gostava de velhos, não gostava de crianças. Sonhava desertos de pedra e cimento. Sugiro que aquela praça seja refeita. E que haja um concurso de paisagismo do qual poderão participar somente moradores de Campinas.

 

5. Hoje, quando escrevo, estão voltando de Portugal o Laerte, a Valéria, sua mulher, tecladista, e a Márcia, flautista – com os respectivos filhos. O Laerte faz teatro. Nada do que vocês estão pensando. Eu mesmo nunca havia visto teatro do jeito como o Laerte faz. É muito divertido – todo mundo fica envolvido de um jeito gostoso. O Laerte fez uma adaptação do meu livro A Pipa e a Flor para o teatro. Na verdade, ele re-criou a estória. Quando a vi pela primeira vez, chorei. Pois ele lutou aqui no Brasil para levar seu espetáculo adiante. Quase mendigou. A indiferença das escolas foi absoluta. Parece que elas já estão tão organizadas dentro das suas rotinas que não querem nada que possa atrapalhar. Enviei um e-mail sobre o Laerte para o meu amigo de Portugal, Ademar Ferreira dos Santos, diretor do Centro de Formação Camilo Castelo Branco. Muito ligado à “Escola da Ponte”. O Ademar acreditou em mim. E tomou as providências. Enviou convite imediato para o Laerte, com passagens para todos o membros da troupe. Em três meses em Portugal, o Laerte fez 54 apresentações em escolas. Estive presente em várias. Foi aplaudido de pé num congresso internacional de teatro.