Crônica: Até breve...

Rubem Alves (1933-2014)

Crônica: Até breve...
‘O Pergaminho’ publica crônicas de Rubem Alves por ter recebido autorização escrita do próprio autor




Do meu pai eu herdei uma total incapacidade para os negócios. Meu pai chegou a ser um homem muito rico, dono de um pequeno império: fazendas, fábricas, cinema, imóveis, exportador de café. Mas nunca entendi como foi que ele ficou rico. Porque ele era, metafisicamente, um sonhador. A exuberância dos seus sonhos só se comparava ao seu desprezo pelos duros fatos da realidade. Ele operava uma contabilidade sui generis onde só se contabilizavam as "entradas" e se ignoravam as "saídas". Deu no que deu: perdeu tudo, ficou pobre, teve de recomeçar a vida, aos 40 anos, como viajante. Foi mau? Vocês devem se lembrar daquela estória que contei, do "se é bom ou se é mau só o futuro dirá". O fato é que se meu pai não tivesse perdido tudo, se tivesse continuado rico, eu seria hoje, provavelmente, um rico criador de gado guiando Cherokee. Acho que só fiquei escritor porque meu pai perdeu tudo. A vida tem dessas coisas: o que parece ser perda, num momento, com o passar do tempo vira ganho.

Pensando sobre o meu pai estou convencido de que ele tinha vocação para artista. Porque os artistas são esses tipos do outro mundo cuja alma está comprometida com a beleza e, por isso mesmo, não sabem lidar com dinheiro. Artista bem sucedido como empresário é coisa raríssima. A regra é que os artistas são pobres, necessitando, para sobreviver, da ajuda de mecenas. O exemplo típico é o de Van Gogh que nunca vendeu um quadro e sobreviveu graças ao irmão. Posteriormente os empresários da arte se enriqueceram vendendo os seus quadros, muito embora eles mesmos não fossem capazes de desenhar coisa alguma.

O artista é uma pessoa apaixonada por um sonho de beleza e que, para realizar o seu sonho, é capaz dos maiores sacrifícios. O artista não contabiliza lucros; contabiliza alegria. É o objeto que ele produz que lhe traz alegria, e não o lucro que possa ter. Marx, falando sobre os artesãos, dizia que sua alegria se encontrava no fato de que eles viam o seu próprio rosto refletido na sua obra.

Os homens de negócios, empresários, podem até gostar de objetos de arte. Mas não é a beleza que os impulsiona em suas atividades produtivas. Imagino que uma empresa que produz papel higiênico pode dar grandes lucros. Mas acho duvidoso que o dono tenha alegrias narcísicas ao contemplar os rolos do dito papel. Sua alegria não está no produto; está no dinheiro. Um dos mais bem sucedidos empreendimentos comerciais na área da comida são os restaurantes McDonald’s. Mas é possível imaginar que o dono do McDonald’s tenha sentido alegria ao ver um hamburger com batatas fritas? Haverá coisa mais medíocre, do ponto de vista artístico? Vi, em Nova York, uma luminoso gigantesco da McDonald’s com a seguinte frase: "Mais de 30 bilhões vendidos!" Isso, sim, é alegria: não o hamburger, em si mesmo, mas a proesa empresarial medida em bilhões. Se eu fosse dono da McDonald’s ficaria felicíssimo com esse fabuloso resultado. Mas, na hora de comer, não iria a um McDonald’s comer hamburger com batatas fritas. Iria a um restaurante em que cada prato é feito artesanalmente - e não aos milhares, numa linha de montagem: tudo igual.

Tenho viajado por esse Brasil e me encontrado com artesãos fantásticos - todos eles trabalhando em oficinas rústicas e pobres e vivendo da mão para a boca. O que me dá uma imensa alegria, por ver que a beleza vai aparecendo teimosamente. E me dá também uma tristeza imensa por me defrontar com a dura evidência de que beleza é mau negócio.

Faz muito tempo escrevi que tinha um sonho que nunca se realizaria: eu queria ter um restaurante. Não pensava num restaurante como meio de vida. Não me interessava vender comida. Fascinavam-me os atos de cozinhar e comer, rituais sagrados. Dediquei metade de um livro a uma meditação sobre A festa de Babette. Babette não era uma cozinheira. Ao final do seu último banquete que a arruinou economicamente ela comentou: "Sou uma artista. E os artistas não ficam pobres jamais..." Sou de opinião que a culinária deve ter a dignidade acadêmica que têm a pintura, a dança, a música, a escultura, a poesia. O objetivo da arte é produzir prazer. E que prazeres a culinária produz! Prazeres do gosto, do olfato, da audição, do tato, da visão! Um banquete é um concerto em que todos os sentidos são excitados. E, mais do que isso, é uma arte que só existe na comunhão da amizade. Posso ter um grande prazer ouvindo, sozinho, uma peça musical. Mas será possível ter prazer comendo sozinho? Um restaurante onde as pessoas vão só para comer - isso não me interessava. Há muitos - e bons - que fazem isso.

Aí, um dia, o Marcos, meu filho, que herdou um pouco a doidice do avô, me disse: "Pai, vamos fazer um restaurante?" O sonho tomou conta de mim e começou então o trabalho de dar forma ao sonho. O espaço: ele teria de ser bonito, arte. Não beleza acessória. Teria de ter a cara da gente. Beleza essencial. Antes de comer a comida, comer a beleza. Um espaço de fora, onde se poderiam ver o céu e as estrelas. Jardim. O jardim é o mais alto sonho da humanidade. A alma humana deseja recuperar o Paraíso. Lá estava uma mangueira gigantesca com mais de 60 anos (minha velha conhecida, dos tempos de estudante no seminário). Incomodava os vizinhos. Na ocasião das mangas, uma praga. As mangas caiam e quebravam as telhas. O racional seria cortá-la. Mas como cortar uma árvore como aquela? Era preferível suportar o incômodo e os prejuízos. Naquela árvore morava o astral do lugar. Alguns juravam haver visto gnomos e duendes escondidos nos seus galhos! Tão bela! Tão inútil! Modestas, ao lado dela, uma pitangueira e uma jabuticabeira, que se enchia de flores perfumadas. Bambus, bromélias, orquídeas, papirus, trepadeiras... Dentro, um espaço aconchegante, onde moraria a arte de Salvador Dali. Por todos os lugares, os bigodes do Dali: pura molecagem! Música. Teria de ter música ao vivo, todas as noites. Trouxe o meu piano, companheiro de muitas horas de prazer. E a comida - pratos diferentes, muitos deles servidos com flores coloridas, comestíveis. E as sopas - minha paixão! Aí o restaurante começou a acontecer. E foi aquilo com que tínhamos sonhado. Mais que um comedouro, um lugar de encontros, de amizade, de alegria. Há restaurantes em que cada mesa é uma bolha fechada. Terminada a comida, paga-se a conta, vai-se embora. No Dali não era assim. Havia um clima de alegria e comunicação que ligava tudo e todos. Noite maravilhosa foi aquela em que um grupo de japonesas fez sukyiaki para todo mundo. Me vestiram com um kimono samurai e me ensinaram a receber os convidados com "irashai-massê": bem-vindos. Em dias especiais os clientes podiam ser cozinheiros e convidar seus amigos. Foi muito bom.

Mas, como eu disse, arte não é bom negócio. É difícil que a arte dê lucro. E depois de uma longa e sofrida luta, tivemos de dizer "adeus" ao Dali. Ontem foi o seu último dia.

Agora suas fontes estão silenciosas, as cadeiras estão empilhadas, os freezers e geladeiras estão vazios, os fogões estão apagados, as velas estão nas prateleiras. E as cozinheiras, os garçons, o barman, o chopeiro, o segurança, os demais funcionários, de quem nos tornamos amigos - não mais serão vistos por lá, durante as noites. Estamos tristes. Todo sonho quando morre é triste.

Falando em morte de sonhos, meus amigos que curtiram amizade no Dali protestaram. Disseram que talvez não fosse isso. Sonhos não morrem. Apenas entram em hibernação. Como as lagartas que entram no casulo e lá ficam por longo tempo, até o tempo de sair como borboletas. Quem sabe, depois da hibernação, um outro Dali vai surgir!

Razão por que continuaremos a cuidar dos jardins: as plantas ignorarão que o Dali está fechado. E continuaremos a cuidar da velha mangueira, sem o medo de que alguma manga caia na cabeça de um cliente...

O espaço bonito está lá, para quem quiser. Se a saudade bater, é fácil visitar! O espaço está esperando. E eu e o Marcos também. Como disse, sou como o meu pai: ruim para os lucros, teimoso no sonhar!