Opinião: Passarinho

Rubem Alves (1933-2014)

Opinião: Passarinho
‘O Pergaminho’ publica crônicas de Rubem Alves por ter recebido autorização escrita do próprio autor




Uma amiga foi ao Rio Grande do Sul e me trouxe de presente um calendário dedicado a Mário Quintana porque já se passaram cem anos do seu nascimento. O calendário é um céu azul com uma enorme lua cheia, o perfil do velhinho sorridente, uma bengala na mão e um passarinho pousado nela. Não é comum que pássaros pousem a uma distância tão curta dos humanos. Eu nunca vi. A razão, Bachelard explica: "Os homens são aqueles que perderam a confiança dos pássaros." Mas parece que o pássaro pousado na bengala do Mário Quintana não leu Bachelard. Ele confia no homem que segura a bengala.

Esse passarinho é alusão a uma quadra que ele escreveu para se vingar dos seus assassinos. É sabido que ele foi assassinado várias vezes, segundo seu próprio testemunho. "Da primeira vez que me assassinaram eu perdi um jeito de sorrir que eu tinha... Depois, de cada vez que me mataram foram levando qualquer coisa minha...".  É um texto triste que sangra. Quando o escreveu ainda sentia a dor da faca. Depois, com o passar do tempo, ele aprendeu que o riso é arma que mata mais que a raiva. Foi então que ele pôs um fim ao caso: "Todos esses que aí estão atravancando o meu caminho, eles passarão... Eu passarinho."

Me deu vontade de escrever sobre ele porque também gosto de passarinhos. Quando leio Mário Quintana fico menino de novo porque não é possível lê-lo sem rir aquele riso que a leveza provoca.

A poesia tem um poder mágico: ela nos transporta para mundos diferentes. Quando leio Rilke e Hilda Hilst, por exemplo, sinto-me caminhando por uma floresta misteriosa e densa. Já quando leio T.S. Eliot e Cecília Meireles descubro-me num mar profundo. "O rio está dentro de nós e o mar está em volta de nós.  Nosso olhar é submarino; nossos olhos olham para cima e vêem a luz que se fratura através das águas inquietas. E no fundo dessa fria luz marinha nadam meus olhos, dois baços peixes à procura de mim mesma..."

Aí eu leio o Mário Quintana. Não encontro nem o mistério das florestas e nem o mistério do mar. O que encontro é o mundo que vejo quando abro a janela. Hilda Hilst, Rilke, Cecília e Eliot, serão eles poetas da profundezas enquanto que Mário Quintana é poeta do raso? Leveza e sorriso são indicação de águas rasas?
Nietzsche nunca se considerou raso e ao mesmo tempo se proclamava bufão. Quintana é o poeta que mostra as funduras do raso do dia a dia. Não é preciso nem entrar pela floresta e nem mergulhar até o fundo do mar. Basta abrir a janela... Ele faz poesia com qualquer coisa, qualquer coisa é brinquedo, é pau, é pedra, é beber chopp no bar, é o grito do trem, é o vento que vem ventando e a cidadezinha que cabe no olhar, é o pinhão quentinho, é a cozinheira negra com sorriso de lua, é a última estrela, os sapatos que falam, o silêncio da sala de espera, os baús das avozinhas mortas, o fantasma e pirulin, lulin, lulin...

No seu humor está o truque para nos livrarmos dos monstros que nos perseguem. Você vai indo por uma rua. De repente aparece um dragão soltando fogo pelas ventas. Você começa a correr. O dragão corre mais. Aí você para, olha para o dragão e diz: "Joli, Joli..." Na mesma hora ele vira um cachorrinho com rabo no meio das pernas...

Será que o truque funciona quando o dragão se chama Morte?  "Sempre fui um metafísico", ele afirmou. "Só penso na morte, em Deus e em como passar uma velhice confortável". O que é que o pensamento pode fazer com a morte? "Um dia... pronto, eu me acabo. Pois seja o que tem de ser. Morrer, que me importa? O diabo é deixar de viver!"