Crônica: Envelhecendo junto ao mar

Rubem Alves (1933-2014)

Crônica: Envelhecendo junto ao mar
‘O Pergaminho’ publica crônicas de Rubem Alves por ter recebido autorização escrita do próprio autor




Nossa amizade começou quando éramos professores na Unicamp. Ela, Vilma Clóris de Carvalho, ensinava neuro-anatomia, uma coisa danada de complicada. Era pesquisadora. Mas muito mais que pesquisadora: o seu prazer era colocar micuins na cabeça dos alunos, aqueles minúsculos carrapatos que dão uma coceira danada. A curiosidade é um tipo de micuim que provoca coceira na inteligência e a faz pesquisar. Pesquisamos para nos livrar da coceira... Um dia ela me revelou que os seus alunos mais duros de aprender eram aqueles que haviam tirado as notas mais altas no vestibular. Os vestibulares provocam uma deformação na inteligência ao ensinar que existe sempre uma resposta certa entre quatro alternativas. Na vida, e especialmente na medicina, há muitas perguntas que não têm resposta certa. Assim, quando ela explicava aos seus alunos os meandros da neuro-anatomia, mostrando-lhes as múltiplas alternativas e complicações, havia sempre um que perguntava: “Mas, professora, qual é a resposta certa mesmo?” O que preocupava aquele aluno não era conhecer a vida; era acertar na prova. O importante é tirar boa nota. Há saberes na cabeça que impedem que haja saberes na vida.

Nós dois nos aposentamos, envelhecemos, e nos pusemos a pensar sobre a vida, a partir da velhice. Não é curioso isso, que a velhice sendo o destino de todos nós, não haja nada, nas escolas, que nos prepare para essa experiência? Acho que é porque as escolas, e especialmente as universidades, estão comprometidas em preparar seus alunos para o mercado de trabalho. Acontece que os velhos estão fora do mercado de trabalho. A nossa sociedade define a nossa identidade por aquilo que fazemos, da mesma forma como os objetos são definidos por aquilo que podem fazer. Esferográficas: escrever. Lâmpadas: iluminar. Lâminas de barbear: barbear. Quando esses objetos ficam velhos e não mais podem executar a sua função são jogados no lixo. Quem deixou de ter função econômica deixou de ter identidade. Vai para um lixo social chamado exclusão. Já contei isso mas vou contar de novo. Faz anos, eu era bem mais jovem, fui convidado a fazer uma palestra a um grupo da terceira idade. Lá estavam eles, cabeças grisalhas, sorridentes... Comecei a minha fala dizendo: “Então, os senhores e as senhoras finalmente chegaram à idade em que podem se entregar ao luxo de serem absolutamente inúteis...” Foi um pandemônio. Sentiram-se ofendidos. Trataram de me provar que ainda eram úteis. A esferográfica ainda não se esgotara: fazendo um pouquinho de força escrevia. E a lâmpada, sacudindo-se a filamento, ainda iluminava. E a lâmina, embora rombuda, conseguia fazer a barba, com só um pouquinho de dor... Aí eu comecei: “Vassouras são úteis. A Valsinha do Chico é inútil. Vocês preferem estar junto às vassouras a estar junto à Valsinha. Sacos plásticos são úteis. Os poemas da Adélia Prado são inúteis. Vocês preferem a companhia dos sacos plásticos à companhia dos poemas...” Quando eu comecei a falar sobre a utilidade do papel higiênico e a inutilidade de um beijo caiu a ficha... Pois é: eu e a Vilma ficamos velhos e com alegria nos entregamos às inutilidades: escrever, contemplar, tomar banho de mar, tomar banho de cachoeira... A Vilma produziu uma linda inutilidade: um livro com o título Envelhecendo Junto ao Mar. Uma delícia. Uma experiência de poesia e comunhão. Eu acho que, na velhice, cada coisa que se diz é uma oração. Oração é qualquer palavra que brota do mais fundo dos nossos desejos. Na velhice saímos à cata das palavras essenciais. Por isso nos voltamos para os poetas. A Vilma catou muitas... Aliás, uma das coisas que se faz junto ao mar, nas praias, é catar conchinhas. Cada poema é uma concha, como essa oração de Gabriela Minstral: “Dai-me, Senhor, a perseverança das ondas do mar que fazem de cada recuo um ponto de partida para um novo avança”.
Os poetas são seduzidos pelo mar. Diz a Cecília: “A solidez da terra, monótona, parece-nos fraca ilusão. Queremos a ilusão do grande mar, multiplicada em suas malhas de perigo.” E continua: “Não me chama para que siga por cima dele, nem por dentro de si: mas para que me converta nele mesmo. É o seu máximo dom”. Velhice é quando o rio se prepara para converter-se em mar. O mar é o destino de todo rio. Ouvindo o barulho das ondas que vemos ouvimos o barulho de ondas que não vemos... Fernando Pessoa ouvia o mar. Leia devagar. E leia de novo. “Que costa é que as ondas contam e se não pode encontrar por mais naus que haja no mar? O que é que as ondas encontram e nunca se vê surgindo? Este som de o mar praiar, onde é que está existindo?” Eu e o mar somos um. A Vilma, enquanto ouve o mar, continua a catar conchas: “Esta manhã eu tinha dezessete anos. Mal comecei a dança e já é hora de acabar o baile. Enquanto estava resolvendo quem eu ia ser quando crescesse um dia, minha acne desapareceu e aqui estão meus joelhos enrugados. Enquanto eu pensava que era ainda uma menina meu futuro virou passado. Existe ainda poesia em mim e isso não parece justo... (Levison).

Uma coisa boa na prosa poética da Vilma é que, ao se tornar poeta, ela não se esqueceu daquilo que sempre foi, professora. E assim nos levam os seus textos ora a navegar nas águas do mar, ora a andar nos caminhos da terra. Com isso ela revela as conexões que existem entre a poesia e a vida, entre o mar e a terra: “Estudos continuam a demonstrar que, para a maioria das pessoas, o estilo de vida e rotina observada têm mito mais impacto sobre a saúde e a longevidade do que, propriamente, a hereditariedade.” “O ato de lembrar permite que emoções vividas sejam levadas até o córtex cerebral, onde poderão ser processadas conscientemente. Pensar, falar e escrever sobre emoções já distantes, e assim vistas de longe, nos dão controle sobre elas que continuarão armazenadas, mas agora nos permitindo recordá-las, compreendendo-as, aceitando-as.”

Estou pra começar a fazer o que a Vilma fez: vou fazer relatórios dos meus passeios pelas minhas memórias. Só que eu, diferente da Vilma, não andarei por praias. Andarei pelos caminhos das montanhas de Minas. Garanto uma coisa: não haverá nada grande. A alma não gosta de coisas grandes. “De que é que se tem sede nesta alma?”, perguntava Fernando Pessoa. “De qualquer coisa como tudo que foi a nossa infância. Dos brinquedos mortos, das tias velhas idas. Essas coisas é que são a realidade, embora morressem. Que tem o Inefável comigo?” Assim nós, velhos, brincaremos de trocar figurinhas...