Crônica: Compaixão

Rubem Alves (1933-2014)

Crônica: Compaixão
‘O Pergaminho’ publica crônicas de Rubem Alves por ter recebido autorização escrita do próprio autor




Viajar é fácil. O difícil é a gente desembarcar da gente mesmo. Bernardo Soares achava que isso era impossível. "Que é viajar e para que serve viajar? Quem cruzou todos os mares cruzou somente a monotonia de si mesmo". Lembro-me de um grupo de pessoas, família e amigos, assentadas em círculo na praia. Mas bastava escutar a sua conversa para perceber que eles não estavam nem vendo e nem sentindo nada do mundo maravilhoso que os cercava. Conversavam o mesmo que normalmente conversavam à roda dos churrascos e das cervejinhas em S. Paulo. Não haviam desembarcado de si mesmos. A areia, o mar, as árvores lhes eram indiferentes: não haviam entrado nos seus cenários interiores. Eram apenas um espaço diferente para o qual haviam transferido a banalidade do seu cotidiano.

Mas um outro Fernando Pessoa por nome Alberto Caeiro pensava diferente de Bernardo Soares. Ele sabia da maravilhosa possibilidade de ver o mundo como nunca tinha sido visto. Ver o mundo pela primeira vez, com olhos de uma criança. Não é fácil. Como ele mesmo disse, ver o mundo pela primeira vez, com olhos de criança, requer a difícil arte de desaprender o jeito de ver que nos ensinaram. Falo isso por experiência própria. Gosto de fugir para as montanhas. Mas, estando lá, por uns três dias não consigo estar lá. Não consigo ver. Minha cabeça está tomada pelos pensamentos que levei comigo da cidade. Mas, aos poucos, vou desembarcando de mim mesmo. Sem televisão, sem telefone, sem computador, sem relógio...

Ah! Os relógios! Lembro-me de uma vez, quando vivi nos Estados Unidos, em que eu e minha família fomos passar uns tempos nas montanhas de Vermont. Penduramos os relógios em pregos, na parede. Naquele tempo não havia relógios a pilha. Eram os automáticos, que funcionavam pelo poder dos movimentos do braço. Pendurados, a corda acabava e eles paravam. Que horas são? Ninguém sabia. E não fazia diferença alguma. Sem relógios, os corpos começavam a seguir o tempo biológico: acordar quando o sono acaba, comer quando dá fome, andar quando se tem vontade.

Desligado do tempo urbano, o corpo vai sendo contagiado pelo tempo da natureza. As horas são marcadas pelo canto dos galos, das siriemas, da luz do sol, das árvores, das nuvens, da chuva. De noite, sem televisão, na solidão, no silêncio, sem luzes, a gente ouve a música das estrelas. Elas falam de eternidades e a gente se dá conta do efêmero da vida e da tolice das nossas preocupações. O sentimento de eternidade nos torna mais sensíveis ao momento. Vamos entrando no tempo dos bichos e das plantas, que não tem passado e nem futuro, mas apenas o presente. Carpe Diem! Viva o momento! Lembro-me do verso de Caeiro: "Ah, como os mais simples dos homens são doentes e confusos e estúpidos ao pé da clara simplicidade e saúde existir das árvores e das plantas!".

Nada melhor para nos desembarcarmos de nós mesmos que um banho de cachoeira! A água, batendo forte e fria na cabeça e no corpo, faz silenciar os pensamentos perturbados. Me dá, então, uma vontade de me mudar para lá, de me desligar da correria da vida urbana, de parar de escrever. Por falar em escrever, com frequência pessoas me dizem: "Nesse lugar paradisíaco você deve ter muita inspiração!" Negativo. Nunca tive lá qualquer inspiração. Nunca escrevi uma linha. A escritura é um esforço para se capturar em palavras uma felicidade que não se tem. Quando a gente está feliz não tem necessidade de inspirações...

Mas logo termina o tempo que me foi dado, e a cabeça volta a pensar. Embarco de novo em mim mesmo. Ainda estou lá, mas não estou mais. Todo mundo que viaja de férias já teve esta experiência. Nos dois últimos dias, antes da viagem de volta, a gente já voltou. Não está mais lá. Acabou a graça.

Assim, tive de voltar para o mundo urbano. No posto de gasolina comprei uma Veja. Na capa, a fotografia do Lalau. Logo me esqueci das árvores, das cachoeiras, dos macacos e siriemas. Li o artigo que descreve a rede de corrupção e roubalheiras que ligou juiz, empresários e políticos. Mas estas informações não me disseram nada de novo. Variações de um script que eu já conhecia. O artigo não me fez pensar. Li, apenas. O que me faz pensar é o rosto do Lalau. Fico intrigado: Como é ele, lá dentro? O rosto é típico de um ser humano. Deve pertencer à espécie zoológica homo sapiens. Eu também pertenço à espécie homo sapiens. Somos parecidos? Irmãos?

Entre os animais, a espécie define um tipo definido de comportamento. Os beija-flores fazem sempre as mesmas coisas, os leões fazem sempre as mesmas coisas, as andorinhas fazem sempre as mesmas coisas. Pergunto: E quanto aos homens? Que é que os caracteriza? O que faz com que digamos que aquele indivíduo é um homem? Diferentemente das espécies animais, os indivíduos da espécie "homem" não fazem sempre as mesmas coisas. Eles não são os mesmos. Há os sábios, os santos, os heróis, os místicos - mas há também os canalhas, os crápulas, os corruptos, os assassinos, os torturadores. É certo que pertencem todos à mesma espécie zoológica.

Mas será que uma classificação zoológica é adequada para se compreender esse animal que destoa de todos os outros, na natureza? Os animais de uma mesma espécie são todos irmãos. E os homens? Serão eles todos irmãos? Entre os animais, a irmandade é dada por nascimento. Mas entre os homens a irmandade pode ou não acontecer. E se não acontecer? Continuam estes a merecer o título de "humanos", como se fossem irmãos dos outros?

O que é o humano? Acho que o humano não é uma qualidade biológica. É uma qualidade espiritual. E essa qualidade é a capacidade para ter "compaixão". O "paixão", de compaixão, vem do latim passus, sofrer. Compaixão é "sofrer com". Eu, indivíduo, não estou sofrendo. Sozinho estou feliz. Mas olho para um outro que está sofrendo: um menino sem agasalho, numa noite fria, pedindo uma moedinha, tarde da noite num semáforo. E, de repente, eu começo a sofrer um sofrimento que não é meu; é do menino. Fico fora de mim. Estou no corpo do menino. Sofro com ele.

Essa terrível e maravilhosa capacidade de sofrer os sofrimentos dos outros eu considero como a marca do humano. Ela é terrível porque nos arranca dos limites do nosso corpo: meu corpo estaria feliz se estivesse só nele; mas porque ele está no corpo do menino, eu sofro. A compaixão aumenta o nosso sofrimento. E ela é maravilhosa porque através dela nunca estamos sozinhos: meu corpo é o centro sofredor do universo inteiro. Minha compaixão abraça tudo que vejo e imagino. Pela compaixão estamos unidos a todas as coisas. E todas as coisas, assim, passam a fazer parte de nós mesmos. Fernando Pessoa sentia compaixão pelos arbustos. "Aquele arbusto fenece, e vai com ele parte da minha vida. Em tudo que olhei fiquei em parte. Com tudo quanto vi, se passa, passo. Nem distingue a memória do que vi do que fui". Compaixão é uma qualidade do olhar: olho e fico em parte no que vi.

Por isso sofro com o ipê cortado, com o cão moribundo, com o velho abandonado. Quanto maior a compaixão, maior o sofrimento. Talvez seja essa a razão por que, no cristianismo, Deus esteja sendo permanentemente crucificado pelo mundo. Não para expiar pecados, como dizem os teólogos. Mas por pura compaixão. É da compaixão que surge a suprema norma ética de "fazer aos outros o que queremos que nos façam". Mas a ironia está em que para quem está movido de compaixão a norma não é necessária e para quem não está movido por compaixão ela é inútil.

Lalau é apenas o representante de uma enorme classe de indivíduos cujos olhos não foram tocados pela compaixão. Eles só sofrem as suas próprias dores. Olham para os que sofrem e não sofrem. Por isso são insensíveis ao sofrimento dos outros. É essa insensibilidade ao sofrimento dos outros que lhes permite fazer o que fazem. Há a antiga definição do homem como animal racional. É certo, Lalau é um animal racional, formado em direito e juiz. Mas a sua capacidade de pensar não lhes deu compaixão. A capacidade de pensar, assim, não me parece ser adequada para definir o que é o humano. Eu proponho, portanto, que o homem seja definido como uma nova espécie: o homo compassivus. Àqueles a quem falta a compaixão falta também a qualidade de humanidade. Não são meus irmãos.

Agora o Lalau está dentro de mim. Quero desembarcar de mim mesmo mas não consigo. O rosto dele, na capa da Veja, não me deixa. O jeito é voltar para as montanhas apara recuperar minha humanidade com as árvores, macacos, tatus e jacus...

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"Lalau é apenas o representante de uma enorme classe de indivíduos cujos olhos não foram tocados pela compaixão"

"Quanto maior a compaixão, maior o sofrimento. Talvez seja essa a razão por que, no cristianismo, Deus esteja sendo permanentemente crucificado pelo mundo."