Cronicando: Vinho Evoluído

Robledo Carlos (de Divinópolis)

Cronicando: Vinho Evoluído
Robledo Carlos é membro da Academia Formiguense de Letras




Sob o pergolado impecável e com um cálice de vinho nas mãos, era assim o que se via.

Certo dia, Giuseppe, um senhor proprietário de uma vinha na Toscana, observava seu vinhedo orgulhoso e feliz por tamanha beleza.

O parreiral estava como nunca, completamente florido, estupidamente florido.

Com as mãos junto à cintura, ele respira fundo e discretamente sorri daquilo que vê.

Afasta-se um pouco, pega uma taça translúcida de vinho, delicia-se. Coloca a taça novamente sobre a bandeja, tira seu lindo sapato italiano feito à mão aqui mesmo na Toscana e repousa no banco de vime com estofados florais, colocando o seu chapéu de lebre branco sobre a testa, a fim de apreciar a magnífica imagem.

Adormeceu como um passarinho sob o efeito do sol e a brandura do vento ao balanço uivante dos ciprestes.

Pouco abaixo está Ruggero, um camponês simples. Na cabeça uma boina desgastada pelo tempo, uma calça arregaçada até as canelas e um suspensório que a segura junto ao ombro.

Observa contemplativo aquilo que vê, sabe de cada uma das suas parreiras, ele as conhece como se filhas fossem, uma a uma.

Cada detalhe da poda, cada surgimento dos primeiros brotos, das noites frias que poderiam queimar as folhas e do sol a torrá-las em dias quentes, na busca implacável de longas vigilâncias pela filoxera traiçoeira.

Ele sabia de cada uma de suas parreiras.

Se lembra da manhã, ao chegar na vinha e ver as primeiras flores a abrir. Há amor no que se vê, o parreiral parece reconhecê-lo em uma cumplicidade sem igual.

Pega uma pequena botilha tampada com uma rolha, come um pedaço de pão e se assenta.

Bebe a água fresca da botilha após o lanche, deita debaixo de uma parreira, tira o velho sapato que usa para a lida, coloca as mãos sob a cabeça em forma de travesseiro e logo põe-se a dormir.

Estavam um pouco próximos um do outro, uns trinta passos os separavam.

Ambos podiam se ver, tanto Giuseppe, como Ruggero.

Adormeceram.

Uma típica cena de uma sexta hora.

O sol reluzente dava maior glamour ao imponente sapato artesanal de Giuseppe que observa o velho sapato de Ruggero, o camponês.

O sapato sorri desdenhosamente para o velho sapato que retribui o sorriso, faltando umas tachas, um cadarço e o deixando bem desmilinguido.

Iniciam então um pequeno diálogo:

- Olá, Senhor! Diz o sapato de Giuseppe.

- Boa tarde! Responde o sapato velho de Ruggero.

- Me apresento, sou o sapato de Giuseppe, o dono de todo esse maravilhoso vinhedo onde as melhores uvas desse país são cultivadas. Sou feito de couro de cabra procedente do Apenino. Sou feito de couro tratado somente com produtos naturais que dão maior brilho, conforto e maciez para o deleite dos pés de Giuseppe. Sou tratado com um bom óleo e graxa para destacar a minha beleza e deixando-me com bastante brilho. E você? -pergunta o sapato de Giuseppe.

- Sou isso mesmo do que vês. Responde o velho sapato.

-Sou esse sapato velho de couro já sem cor definida, furado e soltando as tachas. Trabalho de sol a sol por aqui com Ruggero a quem sirvo, que ainda me lava e me coloca ao sol nos dias de descanso para tudo começar novamente. Se não me falha a memória, também sou de couro de cabras ou de vacas; é que quando estou sendo lavado por Ruggero, ele, às vezes, me diz que sou couro de cabra, noutras vezes me diz que sou de couro de vaca. Acontece que Ruggero está meio fraco da cabeça, coitado, já está velho feito a mim e olha que não fui feito para ele. A única certeza que tenho, é que fui um dia o sapato preferido de Giuseppe, esse que agora você o calça. Fui dado a Ruggero após ficar fora da moda e velho. Eu já estive aí onde você se encontra. Eu já pisei onde você pisa. Hoje, o que nos diferencia, são as mãos de quem nos lava. Todas as uvas desse vinhedo serão colhidas pelas mesmas mãos que me lavam. Todas essas uvas serão pisadas pelos pés de Ruggero, a quem sirvo. Elas serão carregadas nos ombros de Ruggero e eu estarei junto. Levarei toda a produção, cesta por cesta para a fermentação, depois para a prensagem, envelhecimento, engarrafamento e, por fim, armazenamento. Não tiro seu brilho, ilustradíssimo sapato! -disse o velho sapato.

Continuando, o velho sapato completa:

- Toda vez que vires os homens de bons sapatos erguerem uma taça de vinho a degustar em buscas de identidade e sabores, verão lágrimas que escorrem sobre a mesma taça, e lembrarás que sempre haverá um Ruggero e um velho par de sapatos sob o vinhedo.

Ruggero já está de pé, Giuseppe ainda dorme.