Opinião: A herança

Ana Pamplona (de Formiga)

Opinião: A herança
Ana Pamplona é membro do Coletivo Poesia de Rua




Equilibrando-se sobre o “scarpin’ com estampa de onça, Dodora interrompeu a marcha para ler a placa preta com letras douradas na parede: Dr. Joaquim Bartolomeu Amâncio de Oliveira – Cirurgião Dentista – CROMG 5.628. “É aqui”, pensou. Ajeitou a roupa, os óculos de sol, empertigou os ombros e entrou. Achou o estofamento das poltronas um tanto gasto, o chifre de boi na parede de extremo mau gosto e a sala um pouco escura. Apertou a campainha.

Atendeu-lhe uma moça sorridente. Muito simpática, convidou-a a entrar e sentar-se na cadeira odontológica de Toletinho. Enquanto aguardava a vinda do doutor, ela o ouvia na sala contígua a discutir sobre algo que parecia um negócio sobre venda de gado.

— Ora, ora, Tomezinho! Não tem vergonha na cara não?! Tentar me enganar vendendo um boi cego? Está achando que nasci ontem?? — a conversa prosseguiu por mais alguns minutos, até que ele entrou na sala de atendimento proferindo impropérios contra o tal Tomezinho.

— Onde já se viu?! Aquele vagabundo do Tomezinho há de se ver comigo... Muito bem... que temos aqui? — disse pegando a ficha em cima da mesa — Auxiliadora Modesto de Faria... (percebeu um discreto sinal de sua auxiliar, indicando que estava com um cigarro aceso na mão). Então, apagou e jogou o dito-cujo fora, a contragosto.

Dodora mexeu na cadeira um tanto incomodada com a grosseria do homem.

— D. Auxiliadora, não? Bom dia, como vai? Em que posso ajudá-la? — perguntou um Toletinho esbaforido e fedendo a cigarro.

— Bom dia, doutor. Pode me chamar de Dodora. Vim aqui porque o senhor foi dentista de meu marido, o Isaías, lembra dele? — respondeu ela.

Toletinho olhou com uma expressão de dúvida para Lucília e respondeu:

— Ah, claro, o Isaías! Lembro-me dele sim. Como ele está?

— Bem, doutor, não sei como ele está, mas, sei onde ele está: com certeza, ardendo no inferno. — respondeu ela.

— O que? O Isaías morreu?? Não sabia...

— Sim, ele morreu...  — respondeu a senhora, já fazendo cara de choro — ele morreu de repente, teve um AVC fulminante e me deixou numa situação horrível — e nessa altura já estava debulhando em lágrimas.

Toletinho correu a entregar-lhe um lenço de papel.

— Obrigada... — disse enxugando os olhos e fazendo careta— descobri que o safado tinha outra família. Não é um desaforo? Eu, que sempre lhe fui fiel e o aguentei todos esses anos, com aquele gênio horrível! E agora vou ter que dividir meu patrimônio com a “outra” ... 

Toletinho fez um cálculo de cabeça e chegou à conclusão que, mesmo dividindo o patrimônio com a concorrente, Dodora ainda iria ficar muito bem de vida, pois o tal Isaías, se bem lembrava, era podre de rico. Então, tratou de oferecer-lhe as devidas condolências pela viuvez e tornou a perguntar sobre o motivo da consulta.

— Ah, sim, obrigada, doutor. O motivo da consulta é que minha dentadura está muito velha e quebrada e preciso de outra — respondeu enquanto tirava um embrulho da bolsa — mas quero aproveitar a dentadura do Isaías, que é nova e tem um fio de ouro num dos dentes. Além do mais, foi o senhor quem fez. É essa aqui ...  — disse isso, entregando o embrulho ao dentista.

Toletinho estava de cabeça baixa, mas ao ouvir as palavras da senhora, tomou um susto. Já vira e ouvira muita bizarrice naquele consultório, mas essa era demais! Deu um sorriso amarelo de cigarro e respondeu:

 — D. Auxiliadora, digo, Dodora, sinto informar-lhe que isso não é possível! As próteses totais ou parciais, sejam quais forem, são individuais! São feitas sob medida para o paciente em questão! Não há como herdar dentadura dos outros! — respondeu ele, com uma expressão esquisita, entre divertida e indignada.

Inadvertidamente, Dodora recomeçou a chorar. E disse entre soluços:

— Ó meu Deus, não é possível! Doutor, o senhor tem que dar um jeito, não posso perder uma dentadura tão bonita! Além do mais, será um bem que a “outra” (disse isso fazendo um muxoxo) não terá direito! Por favor, ajude-me...

Era de doer o sofrimento da mulher. Enquanto Lucília saía de fininho, Toletinho ficou matutando sobre o que dizer. Respondeu-lhe, examinando o objeto:

— Dodora, veja bem, o Isaías morreu, é fato. Agora, vida nova! Dentadura nova! Vamos fazer uma prótese muito mais bonita para você!! Uma prótese especial para uma pessoa especial: vou colocar um brilhante no dente da frente para enfeitá-la! Vai ficar linda! Valorizará mais ainda a sua beleza! Coisa que a outra não tem, não é mesmo??

Como por encanto, o rosto de Dodora se iluminou! Enxugando o rosto, abriu um grande sorriso com a sua pobre dentadura quebrada. Agradeceu a Toletinho e pediu para fazer a “modelagem” naquele mesmo instante! Imagina, sem nem perguntar o preço...

— Vamos sim, Dodora, vamos MOLDAR agora! Só não se esqueça de não colocar a dentadura do Isaías no inventário, heim?? — respondeu ele gargalhando...