Crônica: Dança com Viviane

Ana Pamplona (de Formiga)

Crônica: Dança com Viviane
Ana Pamplona é membro do Coletivo Poesia de Rua




Naquele dia, algo desesperado, saí às ruas procurando. Procurando o que mesmo? Ora, quem poderia saber? Se eu, aquele que estava procurando não sabia, quem é que poderia saber?

Acontece. Acontece, uma ou outra vez de nos faltar algo. Este algo que nos falta, é gente? É coisa? É ar? É remédio, comida, diversão? Nem sempre. Às vezes temos tudo que precisamos. Nada nos falta, aparentemente. Rodeados de amigos, aparentemente. Estamos saciados, aparentemente. No entanto, apesar disso, e talvez por isso, pelo lado de dentro estamos vazios. E quando o vazio se apodera de nós... Ele nos inunda, ficamos cheios dele. Alguns poderão dizer: “falta-lhe Deus! “. Pergunto-lhes: para o caso de ser isso, onde encontrar Deus? Nos templos com mármores, nos salões de tijolos, nas igrejas de pedra? Ao que outros poderão dizer: “falta-lhe ocupação! “. Pergunto-lhes: para o caso de ser isso, onde encontrar ocupação se já se está ocupado??

Então, naquele dia era isso. O inominável e indescritível nada. E eu saí à procura daquilo que não imaginava o que era. Decerto não estaria em mim, ou em minha casa. No entanto, estaria fora?

Andei. Caminhei. Perambulei. Por entre calçadas, esquinas, postes, árvores e bancos de praça. Num dado instante, senti o hálito do vento massageando minha face retesada. Fechei os olhos para ouvi-lo. Parei num ponto qualquer. Um prédio. Entrei. Subi a rampa, dobrei à esquerda, entrei num hall e logo após, um balcão, com moça sorridente. À direita haviam... estantes com livros. Era uma Biblioteca. Fechei os olhos e respirei. Cheiro de livro. Atmosfera de livro. Vitamina de livro.

Iniciei a peregrinação por entre estantes, ainda sem nenhuma perspectiva. Eu, cheio de nada. A cabeça latejando num compasso bem marcado. Virando o pescoço para cá e para lá, como assistindo a um jogo de ping-pong. E de seus lugares politicamente corretos, os livros espreitavam-me. 

Subitamente, alguém à minha esquerda puxa meu braço. Virando, me deparo com o poeta Carlos Drumond, assentado, mão direita no queixo. Parecia desconsolado quando disse-me: “No meio do caminho tinha uma pedra, tinha uma pedra no meio do caminho”. Olhei aquela figura perplexo! Para ele também foi difícil? Andei mais à frente, outra insinuação: “Quem anda no trilho é trem de ferro. Sou água que corre entre pedras - liberdade caça jeito. A maior riqueza do homem é a sua incompletude. Nesse ponto sou abastado”. Era Manoel de Barros, olhando-me de cabeça para baixo, pendurado numa árvore. Parei fascinado por aquela risada grande dele, mas agora, alguém me cutucava as costas dizendo: “O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem!”, afirma isso acendendo um cigarro, encostado num cavalo marrom, o grande Guimarães Rosa! Eu estava começando a gostar daquela viagem...

Um pouco zonzo de emoção, precisei sentar. Cercaram-me imediatamente duas mulheres: Clarice Lispector e Hilda Hist. “Há sonhos que devem permanecer nas gavetas, nos cofres, trancados até o nosso fim. E por isso passíveis de serem sonhados a vida inteira”, me disse esta última. E: “renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Não se prrrreocupe em entender, viver ultrrrrapassa qualquer entendimento”, argumenta Clarice, apagando o cigarro no chão. E aquelas duas mulheres impressionantes me encaravam...

Levantei-me. Na minha frente, Adélia Prado. “Não quero faca nem queijo. Quero a fome. “, disse-me por entre aquele lindo sorriso. Virei à esquerda, estava Machado de Assis. Em sua escrivaninha, sem parar de escrever, me diz: “A vida sem luta é um mar morto no centro do organismo universal”. Fiquei um tempo olhando para o “Bruxo de Cosme Velho”, quando, com um aceno de chapéu, Fernando Pessoa passa por mim apressadamente: “Eu sei que por algum tempo vou seguir oscilante entre a razão e o desejo. Sei também que o tempo vai ser meu amigo para essas coisas da vida. Com coragem eu sigo, nessa velocidade que eu não temo, nem mesmo de ousar ser feliz. “ Seguiu... E eu parei. Estava cansado, embora mais sereno e ainda sem achar a saída do labirinto. 

Havia agora uma quietude por entre as estantes da biblioteca. A dúvida escorria do meu peito. Senti um movimento e, estupefato, vi o coelho de Alice na entrada da sua toca. Ele parecia aguardar-me, silencioso. No ar, um cheiro adocicado, um perfume de mulher, que estranhamente aguçou meus ouvidos. Virei-me, não havia nada. O cheiro ficou forte e eu ouvi a voz de Viviane Mosé: “A maioria das doenças que as pessoas têm são poemas presos. Abscessos, tumores, nódulos, pedras… São palavras calcificadas, poemas sem vazão. A dança é uma forma de amolecer os poemas endurecidos do corpo.”

Então eu dancei com Viviane, deixei o coelho para trás e fui para casa escrever um poema.