Opinião: O reino dos Morangos – Parte 1

Ana Pamplona (de Formiga)

Opinião: O reino dos Morangos – Parte 1
Ana Pamplona é membro do Coletivo Poesia de Rua




Acordar é sempre uma aventura, uma vez que nunca se sabe o que acontecerá a cada amanhecer. O que se sabe é que é preciso levantar da cama e prosseguir aguardando as surpresas do dia. Era o que a Menina fazia. Acontece que nem sempre era dia de surpresas, então era preciso fazer algo em relação a isso, ou seja, provocar a surpresa. Então, vamos lá...

Ritual de quase todas as manhãs: acordar e descer os degraus do prédio rapidamente para chegar cedo ao Reino dos Morangos. Quanto mais cedo melhor, pois as manhãs eram demasiadamente curtas para tantas aventuras. Além disso, a travessia não era nada fácil, exigia muita perícia por parte da Menina. 

O primeiro desafio era despistar a Mãe. Se ela desconfiasse de suas intenções poderia impedi-la com muitos motivos. Talvez justos, mas não mais importantes do que seu intento. 

Depois do despistamento e da descida vinha a parte mais difícil, que era atravessar o banco. Isso mesmo, banco... de dinheiro, de talões de cheques, de cofres, de pessoas tristes e outras coisas mais custosas. Era preciso já na entrada, ficar um pouco invisível, pois era proibida a entrada de crianças. Para que as pessoas não a vissem — especialmente o Pai, que era funcionário e principalmente o gerente, que era o chefe dele — ela se abaixava de uma forma tal, que o balcão a camuflasse e então ia andando agachada até o final dele. Neste ponto, precisava aguardar a oportunidade de atravessar (ainda agachada) até a “mesa número 1”, que ficava quase sempre vazia, mas servia de anteparo para a visão das pessoas. Com a máxima atenção, olhando para um lado e para o outro, respirava fundo e rastejava rapidamente até lá, sempre desviando de um grande e barulhento ventilador. Aguardava alguns minutos pela oportunidade de ouro, quando alguém atravessasse a sala em diagonal, ela aproveitava para se esconder na sombra daquela pessoa, porque ali não havia mesas protetoras. Era o momento de correr, desta vez de pé, até a grande e pesada porta cinzenta que dava para o terreiro do banco — o último desafio, porém, não menos difícil. A Menina abaixava a maçaneta e puxava a portona com todas as suas forças — inutilmente. A bendita nem mexia. Ela abaixava a cabeça para pensar sobre o que fazer e então, não se sabe como, invariavelmente, aparecia uma mãozona atrás dela e abria a porta. Sem virar para trás, sem dizer palavra, e sem saber quem era o seu herói-abridor-de-portas, ela passava correndo. Aquele era um dos mistérios insolúveis até os dias de hoje. 

Aberta a portona cinza, a Menina abria os bracinhos para receber as boas vindas do primeiro morador do Reino dos Morangos — o vento. Algumas vezes quente, outras vezes gelado, ele sempre a abraçava com uma forte lufada. Era bom, ela gostava e ele também se divertia um pouco. Exceto nas vezes em que ele não estava presente.

A seguir, a Menina sempre dizia (se estivesse de bom humor) bom dia! Ao que todos os moradores respondiam, cada um a seu modo peculiar: bom dia! E ela, então fazia sua ronda habitual observando os pormenores e os “pormaiores” de cada pedacinho daquele reino encantado. Os adultos, claro, não conheciam nada daquilo. Os olhos deles não enxergavam a dimensão em que viviam as criaturas dali. A Menina sabia disso há muito tempo dentro dos seus longos sete anos.

Uma rápida olhadela em todo mundo. Todos nos seus devidos lugares? Todos sendo apenas aquilo que precisavam ser? Parece que sim. 

Via D. Lagartixa, imóvel no muro, a vigiar uma aranha cinzenta. Pronta a atacá-la. O bote, certamente seria fatal. Outro mistério que ela precisava pesquisar: que cola era aquela que chumbava o réptil na parede? Não sabia. Mas a cola era perfeita, ah, isso era. Queria ter uma daquela para escalar as paredes. Seria bem mais fácil a chegada ao reino dos Morangos e menos arriscado, diga-se de passagem.

Mais uma olhada em torno: todo mundo vivendo vidas de bicho ou de coisas. As bonecas estavam quietas naquele dia. As vassouras, as panelinhas de cozinhar chuchu, o fogãozinho de tijolos... tudo quieto. Que maravilha. 

Mas naquele dia havia uma formiga cabeçuda morta perto do ancinho. Ótimo! Hora de ir para o microscópio do seu laboratório secreto. Levada ao aparelho (um microscópio de brinquedo, mas muito potente), o pobre inseto foi visto e aumentado em dez vezes o seu tamanho. Ao colocar os olhos nas lentes a Menina quase caiu para trás! Muito grande! Os olhos, as antenas, as medonhas mandíbulas, eram gigantescas. Era certeza, o pesadelo naquela noite.   

Muito bem, vista a formiga gigante, era hora de visitar a plantação de morangos que ficava num nível superior, em canteiros levemente inclinados e muito altos, em relação ao galpão onde ficava parte daquele mundo, inclusive o laboratório. Ela subia num banco pequeno como apoio para um banco maior, a fim de alcançar o primeiro canteiro, colocando o pezinho entre os pezinhos das plantas. Naquele momento, era preciso olhar para cima e verificar se a Mãe não estava na janela procurando-a. (continua no próximo número)