Opinião: Ele abandonou o lar, e ela vai requerer usucapião da casa deles

Maria Lucia de Oliveira Andrade (de Formiga/MG)

Opinião: Ele abandonou o lar, e ela vai requerer usucapião da casa deles
Maria Lucia de Oliveira Andrade é advogada




Ela me conta que os pais sonharam para ela, filha única, vestido de noiva e casamento na igreja. Porém, não foi assim que viram o genro adentrar na família. O namoro se iniciou e, aos poucos, até por proteção a ela, seus pais foram permitindo que ele pernoitasse em casa e permanecesse finais de semana inteiros ali. O tempo foi passando e, naturalmente, com o estreitamento da convivência, um dia se deram conta de que a filha e o namorado já eram companheiros, vivendo como se casados fossem. Chegaram a conversar com os dois sobre a formalização daquele relacionamento, mas o assunto se desviou ao primeiro pretexto.

Quando nasceu a filhinha dos dois, a primeira netinha dos pais dela, estes, sensíveis e amorosos, perceberam que era chegada a hora de ajudá-los a terem a própria casa. Por isso, o pai se dispôs a liberar parte do terreno que constituía o quintal  para que a construíssem ali. Esse terreno, assim como aquele em que se encontrava a casa do pai, ainda não era individualizado; fazia parte de uma grande área que pertencia ao avô dela.

Aos poucos, com recursos fornecidos principalmente pelo pai dela, a casa foi ganhando forma. Destacava-se, separada, na propriedade, por uma simpática cerca de estacas brancas. Talvez por haver ainda na área várias árvores, como ocorre na zona rural, os amigos que iam visitá-los sempre cantarolavam Tavito e Zé Rodrix: “Eu quero uma casa no campo /Onde eu possa compor muitos rocks rurais”...

Se ali era lugar para se ficar do tamanho da paz, como diz a canção, não foi o que aconteceu, infelizmente. O nascimento da filha e talvez as responsabilidades que advieram do fato de terem passado a assumir sozinhos a administração da casa e da vida a dois tornaram a convivência deles mais difícil. Foram desgostando de estarem juntos. Não se reconheciam mais.  O relacionamento se tornou um desgaste para ambos, a ponto de, certo dia, ele decidir sair de casa e não mais voltar.

Não houve, por parte dele nem dela, nenhuma tentativa de retomada.

Agora, após quase três anos de abandono do lar, ele ajuizou uma ação de reconhecimento e dissolução de união estável, requerendo também a partilha da casa deles. O pai dela ficou indignado. Ela me diz que se culpa por expor os pais a mais esse desgosto, por isso pede minha orientação. Não quer prejudicá-los de maneira nenhuma.

Conta-me que a casa não tem registro em cartório. Nem mesmo a casa do pai o tem, pois ainda não houve o desmembramento da área que pertence ao avô. Este permitiu que todos os filhos construíssem ali, mas nenhum novo imóvel foi registrado ainda.

Fica claro para mim que a casa foi construída em um terreno que está em nome de uma terceira pessoa, o avô dela. Também fica claro que o ex-companheiro está alegando esforço comum na construção da casa deles. Como a construção se deu após a data de início da união estável, acredita que tem direito a esse bem, pois é o regime da comunhão parcial de bens que se aplica a esse tipo de união.

Pergunto-lhe se o pai tem as notas fiscais e/ou recibos da compra de material e de pagamento aos profissionais que trabalharam na construção. Ela me diz que ele tem somente os relativos às melhorias que fez no imóvel depois que o companheiro dela abandonou o lar.

Explico a ela que, mesmo que o imóvel tenha sido construído em terreno cadastrado em nome de outra pessoa, se essa construção se deu durante a união estável de ambos e se foi o ex-companheiro quem arcou com os gastos da construção junto com ela, ele tem direito sobre a casa, devido ao regime de bens que se impõe: a comunhão parcial (50% para ela; 50% para ele). Como o pai foi responsável sozinho pelas benfeitorias feitas no imóvel após a separação dos dois e tem provas disso, sobre elas o ex-companheiro não tem direito, pois foram realizadas quando já não mais existia a união estável.

Contudo, como “o seguro morreu de velho” – é o que afirma o ditado popular, salientando que cuidado nunca é demais –, sugiro-lhe que ela deve, em sua defesa, requerer ao Juízo a usucapião familiar do imóvel. A lei estabelece que, quando o cônjuge ou companheiro abandona o lar, e o outro permanece ali, utilizando-o para sua moradia, por dois anos ininterruptos e sem oposição daquele que partiu, exercendo com exclusividade sua posse direta, adquire seu domínio integral. Para isso, é preciso que seja um imóvel urbano com no máximo 250m2, e que a pessoa que requer a usucapião não seja proprietária de outro imóvel urbano ou rural. Cumpridos esses requisitos, certamente o Juízo concederá a ela a aquisição do domínio do imóvel, o que impedirá a partilha desse bem.

Ela se alegra: o imóvel dela tem 200m2.

Explico-lhe que está configurado o abandono do lar, pois foi o companheiro que deixou espontaneamente o imóvel. Fez isso de forma definitiva, deixando a cargo dela todos os custos de manutenção do bem, portanto ele não agiu como quem tinha a posse ou interesse por sua manutenção. Tudo isso sinaliza sua falta de intenção de retornar ao imóvel. Apenas ela usou e tratou a casa como se sua fosse.

Quem não age e não cuida como dono de um imóvel está exposto ao risco de perdê-lo.

 

 

Maria Lucia de Oliveira Andrade

maluoliveiraadv201322@gmail.com