Opinião: Moraram com o tio por anos e tentaram usucapião da casa
Maria Lucia de Oliveira Andrade (de Formiga/MG)
O tio, viúvo e sem filhos, convidou-a para morar com ele. Era o ano de 2004. Ela e o marido tinham um filho de três anos e passavam por algumas dificuldades financeiras. Como gostavam muito desse tio, que, pelo visto, queria ter companhia, viram nesse convite uma oportunidade para reduzir despesas.
Quando completaram quatro anos que estavam morando juntos em plena harmonia, o tio, durante um almoço em família, comunicou que estava doando a casa para ela. Ela e o marido ficaram muito felizes e passaram a lidar com o imóvel como se fosse seu, fazendo nele melhorias e reformas.
Cinco meses atrás, o tio sofreu um AVC, ficou dez dias no hospital, vindo a falecer em seguida. Com seu falecimento, os quatro irmãos dele disseram que a casa teria de ser vendida, pois era herança deles. Não negaram que era dela também, como sobrinha, cuja mãe, irmã do falecido, morrera antes dele. Porém, afirmaram que não aceitariam, de maneira alguma, que fosse só dela.
Inconformada, relembrou a eles o comunicado que o tio fizera de que lhe estava doando a casa, mas eles argumentaram que “doação feita só de boca” não tem valor legal. Chamou a atenção deles para as benfeitorias feitas por ela e pelo marido no imóvel, mas não lhe deram ouvidos.
Conta-me que, então, ela e o marido resolveram ajuizar uma ação de usucapião, pois já estavam vivendo na casa há mais de vinte anos como se fossem seus proprietários. Na fundamentação do pedido de usucapião, alegaram, além do tempo de posse, a doação feita pelo tio a ela, afirmando que era desejo dele que ela ali se mantivesse, mas que outros parentes não reconheceram a doação feita, obrigando-os a ajuizar a ação.
A causa parecia ganha, pois a situação obedecia aos requisitos legais: possuíram como seu o imóvel, sem oposição, de forma contínua, por mais de quinze anos. Mesmo que ao caso fosse aplicado o antigo Código Civil, que previa vinte anos, o requisito estaria cumprido.
No entanto, perderam a causa.
Ela me conta que não foi bom alegar que o imóvel havia sido doado a ela, pois doações feitas apenas verbalmente não são válidas diante da lei. O tio não fizera uma escritura pública formalizando a doação, portanto não havia nenhum registro desse ato.
Teria de ter sido feita essa escritura ou um contrato de doação, levando-se esse documento para ser averbado no registro imobiliário, com o devido recolhimento de tributos e encargos de cartório. Não seria pela ação de usucapião que essa regularização ocorreria.
Outro fato pesou na decisão judicial: ela, o marido e o filho foram convidados a morar com o tio. Este, que era o dono do imóvel, morava com eles. O Juízo entendeu que havia entre eles uma situação de comodato, a qual ocorre quando se empresta um bem para uma pessoa.
O tio deixou-os morar com ele, sem nada cobrar por isso, mas continuou sendo o dono do imóvel, exercendo sua posse sobre ele até a morte. Ao rigor da lei, ainda que ela e o marido tivessem feito melhorias na casa, o dono era o tio. Além disso, o contrato de comodato pode ser verbal e por tempo indeterminado, e foi assim que o Juízo interpretou a situação deles. Como não é possível fazer usucapião de imóvel cedido em comodato, perderam a ação.
Ela me diz compreender as razões apresentadas pelo Juízo, mas, mesmo assim, sente que ela e o marido foram prejudicados. As melhorias que fizeram na casa valorizaram o imóvel, e, agora, os irmãos do tio dela (devido à mágoa, não consegue referir-se a eles como seus tios) usufruirão dessa valorização sem terem investido um real sequer nelas.
Digo-lhe que pode conversar com eles e pedir um ressarcimento daquilo que ela e o marido gastaram. Os dois, como comodatários, têm direito ao ressarcimento das benfeitorias úteis e necessárias que foram feitas e se incorporaram ao imóvel, pois o tio, que é o comodante, autorizou-as. Só não teriam direito a esse ressarcimento se tivessem sido feitas sem o consentimento dele. É claro que, para ser levantado o montante a ser ressarcido, eles precisarão apresentar recibos e notas fiscais de tudo quanto gastaram.
Se os tios não tiverem recursos financeiros para essa compensação imediata, poderão entrar em acordo e destinar a ela um percentual maior do valor que conseguirão com a venda da casa. Outra possibilidade é ela tentar adquirir dos tios as partes que cabem a eles na casa, abatendo-se, do total que ela terá de pagar pela compra, o valor gasto com as benfeitorias. Se, feitas essas propostas, eles não aceitarem nenhuma, ela e o marido ainda têm a opção de ajuizar uma ação de indenização. “Não; de novo, não. Basta.” – ela reage, categórica.
Entendo o desgaste dela. Quando já se experimentou uma situação em que as emoções e os laços familiares se misturaram a questões legais, o que se quer é distância de qualquer conflito. Abre-se mão até do próprio direito.