Opinião: Ele quer que o testamento feito pelo pai seja anulado

Maria Lucia de Oliveira Andrade (de Formiga/MG)

Opinião: Ele quer que o testamento feito pelo pai seja anulado
Maria Lucia de Oliveira Andrade é advogada




Estamos assistindo a um torneio de beach tennis, prática esportiva que se alastrou na cidade. Minha irmã, que já venceu alguns torneios, está jogando. É claro que torço por ela. Já ele está torcendo pela oponente, que é sua esposa. Enquanto nossos olhos atentos percorrem a quadra de um lado ao outro, conversamos sobre temas variados, até que, como é costume ocorrer comigo, meu interlocutor envereda pela área do Direito.
Ele me conta que, após o pai falecer, veio a saber que ele havia deixado um testamento, no qual designara a totalidade dos bens para a segunda esposa e para o filho que tiveram em comum. Esse testamento fora feito cerca de seis meses antes da morte do pai, em um momento de saúde frágil. Diz que está profundamente incomodado com essa destinação do patrimônio do pai, mas, como tem uma ótima relação com a madrasta e com o meio-irmão, quer evitar um embate judicial.
Pergunto se já conversou com os dois sobre o fato de que o pai agiu de forma contrária ao que dita a lei, a qual determina a reserva da legítima, isto é, 50% do patrimônio, para os herdeiros necessários (pais, esposa/companheira ou filhos). Ele só podia dispor em testamento de 50% dos bens.
Conta-me que, ao conversar sobre isso com os dois, ouviu que o certo seria respeitar a vontade final do pai dele; que testemunhas o acompanharam ao cartório para a lavratura do testamento. Durante essa conversa, veio a saber que duas dessas testemunhas foram o neto do casal (filho do meio-irmão) e um sobrinho da madrasta e que ambos receberam bens por meio do testamento.
Desde essa conversa, não tem conseguido dormir. Acentuou-se a sensação de que seu direito está sendo violado e que deveria opor-se a isso. Fica pensando no quanto a mãe trabalhou para ajudar o pai a construir seu patrimônio. Ela certamente não aprovaria o fato de o pai tê-lo excluído dos 50% que cabiam a todos os herdeiros por direito. O trabalho da mãe estava contido nesses 50%. Então, sentia ser injusto destinar esse percentual total apenas à segunda esposa e ao meio-irmão.
Certa de que uma arquibancada de quadra de beach tennis não é o lugar ideal para uma orientação jurídica, convido-o a ir ao meu escritório.
A segunda-feira começa com ele já à porta. Como já conheço a história, vou direto ao ponto já exposto a ele no dia anterior. De fato, sua percepção de direito violado está correta. De acordo com a lei, uma pessoa que tem herdeiros necessários só pode dispor de 50% dos seus bens em testamento. Quando se dá a sucessão (quando a pessoa que detém o patrimônio falece), os outros 50% passam a pertencer imediatamente a esses herdeiros; no caso, três: a madrasta, ele e o meio-irmão. Portanto, um terço desses 50% pertencem a ele, por direito.
O segundo ponto tem a ver com as formalidades exigidas para se fazer um testamento. Pelo que ele me descreveu, trata-se de um testamento público.  Herdeiros e legatários (pessoas que, não sendo herdeiras diretas na linha de sucessão, são beneficiadas com algum bem em testamento) não podem servir como testemunhas em testamentos. Assim, não o podem ascendentes, descendentes e cônjuges/companheiros do testador, nem parentes colaterais por consanguinidade até o terceiro grau (irmãos, primos, tios, sobrinhos) do testador ou dos nomeados no testamento.
O neto do pai e da madrasta, assim como o sobrinho dela não poderiam ter servido como testemunhas, já que eram interessados nas disposições testamentárias – receberam uma parcela do patrimônio –, além do impeditivo do parentesco. Os cartórios costumam orientar bem aqueles que os procuram para fazer testamentos. É estranho que o pai dele não tenha sido orientado sobre isso, assim como não se explica que o cartório tenha aceitado aquelas testemunhas.
Digo-lhe que, se quiser, poderá ajuizar uma ação requerendo a declaração de nulidade do testamento, já que se desrespeitou uma formalidade exigida em lei.
Percebo seu desconforto e ressalto que, se quiser pensar melhor, tem tempo para isso, pois se extingue em cinco anos, contados a partir da data do registro do testamento, o direito de impugnar (contestar) a sua validade. Saliento também que não deve sentir-se culpado por reivindicar seu direito. Algumas pessoas se sentem culpadas por reivindicarem direitos relacionados a bens materiais, esquecendo-se, muitas vezes, de que só tiveram de fazer isso porque alguém agiu com elas de forma ilícita.  Quem fez isso com elas poderá fazer com outras. Uma ação judicial pode ser um bom corretivo.


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