Opinião: Jesus

Ana Pamplona (de Formiga)

Opinião: Jesus
Ana Pamplona é membro do Coletivo Poesia de Rua




— Jesus! Volte aqui agora! gritava a mulher para um garoto magro, e muito ágil, que corria desabaladamente em direção à rua.

A cena se passava na porta do consultório do Dr. Joaquim Bartolomeu Amâncio de Oliveira, o Toletinho, famoso dentista da pitoresca cidade de Formiga. Ela, a mãe, agarrou o menino pela camisa e o levou de volta ao consultório, dizendo:

— Doutor, não tem jeito, vai precisar fazer à força! — enquanto o menino Jesus esperneava e gritava.

Toletinho coçou a barba pensativo e acendeu um cigarro, relembrando a hora anterior àquela tragédia, arrependendo-se do momento em que decidiu não ir embora quando deveria ter ido.  Havia terminado seu expediente e já se preparava para ir para casa quando Lucília o aborda dizendo:

— Doutor, tem uma mãe aqui ao telefone, dizendo que a criança dela está com muita dor de dente, precisando de atendimento de urgência. Mandei vir...

— Que?? Lucília Cristina, você está de brincadeira comigo?? — disse o dentista. — Justo na hora de ir embora e ainda por cima... CRIANÇA? Você sabe como eu “gosto" de atender crianças, não?

— Sei sim, Doutor, mas não resisti, a mãe estava desesperada, não encontrou nenhum dentista para atendê-la.

Apesar dos protestos, Toletinho vestiu seu jaleco para atender o paciente, dizendo por entre risos que “preferia estar na fazenda amansando boi bravo”.

Daí a pouco, recepcionados por Lucília, entraram a mãe, o pai, e um garoto de cinco anos, chamado Jesus, com um inchaço do lado direito da face, visivelmente amedrontado. Após os procedimentos de praxe, Toletinho inicia o atendimento com muita dificuldade, uma vez que o paciente choramingava e virava o rosto todo o tempo. A mãe se encontrava sentada ao lado da cadeira, segurando as mãos da criança, e o pai de pé, acompanhando tudo.

  — Abra a boca, por favor, Jesus — pedia o dentista, pela décima vez, inutilmente.

E o paciente esperneava, continuava a choramingar e balançar a cabeça, ameaçando levantar-se, ao que era contido pelos pais. Primeiro, prometeram um presente se ele se comportasse. Depois, ameaçaram colocá-lo de castigo e de levar uma surra. Nada adiantava. Cansado daquela lengalenga, Toletinho disse:

— Senhores, para mim está impossível atender o filho de vocês. Podem levá-lo. Atender criança não é minha praia!

Mas os pais insistiram, dizendo que o filho estava chorando de dor desde a noite passada e não haviam encontrado outro dentista para atendê-lo. Além disso, alguém havia dito a eles, que aquele inchaço no rosto era perigoso.

— Realmente! Muito perigoso! Trata-se de uma infecção de um dente e há um sério risco dela se espalhar pelo corpo dele, se não drenarmos esse abcesso. Mas não há como fazê-lo, se seu filho não colaborar! — disse o dentista entre nervoso e desesperado.

Naquele momento, então, o pai deu uns tabefes no menino, fazendo com que o menino saltasse da cadeira e saísse correndo para fora do consultório, compondo a cena patética do início.

Fumando tranquilamente seu cigarro, enquanto Lucília escondia-se no banheiro, Toletinho pensava no que fazer diante daquele quadro caótico. Quando a turma voltou para a sala de atendimento, já sabia o que ia fazer. Jogando o cigarro fora, chamou Lucília, fazendo-lhe o sinal característico para que ela tomasse a devida providência: buscar o famigerado Baú dos Tesouros. Tratava-se de um baú onde Toletinho colecionava os dentes extraídos e sujos de sangue dos animais da fazenda, cavalos, bovinos e outros. A auxiliar horrorizou-se, mas obedeceu. Escolheu o maior e mais destruído dos dentes de cavalo contidos na caixa, lambuzando-o com bastante  molho de ketchup.

Posicionado Jesus novamente na cadeira do dentista e devidamente contido pelos braços fortes do pai e vacilantes da mãe, ele ainda berrava. Chegando-se muito próximo do paciente, Toletinho apresentou-lhe o dente de cavalo seguro por um boticão, dizendo em tom ameaçador:

— Jesus, preste atenção no que tenho a lhe dizer! Este é o dente da última criança que esteve aqui em meu consultório comportando-se como você! Olha o que aconteceu com ela! (disse isso balançando o boticão ameaçadoramente) Quer que aconteça isso com você também? Pois é o que ocorre com as crianças birrentas e os bois bravos!

Ao ver o dente do animal, Jesus, horrorizado, interrompeu os berros arregalando os olhos e balançando a cabeça negativamente. Toletinho continuou o ataque:

— Então vai me deixar tratar o seu dente?? Heimmm???

Atordoado, o pobre Jesus assentiu com a cabeça, permitindo o atendimento.

E foi assim que a partir dali, Jesus se tornou um ótimo paciente. E quando perguntado quem era seu dentista ele respondia: “Doutor Toletinho, meu amigão, amansador de bois bravos...”