Opinião: Quando mataram meu pai em Formiga

Lúcia Helena Fiúza (de Belo Horizonte)

Opinião: Quando mataram meu pai em Formiga
Lúcia Helena Fiúza é professora aposentada




Que eu me lembre, mataram meu pai pelo menos duas vezes em Formiga. Ele era Jair Fiúza da Cunha, Seu Coló, ex-funcionário (exemplar, diga-se) da Rede Ferroviária Federal.

O primeiro falecimento de meu pai veio por meio de um querido amigo, ele se chamava Orlando Ribeiro, conhecido na cidade como Landuca. A segunda vez quem o matou foi o Vicente Vilela, que vendia pães na Chapada em um balaio em cima de uma bicicleta Phillips, com a cajadada final do radialista Aureliano Pinto, o Landico.

Existe uma máxima que garante que se alguém demonstra raiva ou incômodo com algum apelido, o apelido pega. Com as devidas adequações, quando esse alguém é personagem de alguma história inventada, de algum causo mentiroso, a narrativa se propaga e prolifera.

Meu pai passou a vida sendo chamado de Seu Coló. O apelido veio com ele de Iguatama e nós, os filhos, nunca soubemos o motivo, só sabíamos que quando a primeira pessoa usou a alcunha para identificá-lo, ele reclamou… daí, dá para imaginar, né…?, foi Coló a vida inteira.

Pois bem, era um sábado pela manhã e saiu na cidade a notícia de que meu pai havia falecido em um acidente na linha de ferro e que o enterro seria às 17 horas do Cemitério do Santíssimo Sacramento. Quem haveria contado teria sido o Seu Sylvio Rocha da Funerária e quem estava espalhando a má notícia era o Landuca. Ele foi ao Seu Guilherme da Mobilar, ao Seu Rubens da Drogaria, ao Coronel Balbino da Casa Santo Antônio, ao Paschoalino Natali da Ciclope e a todos que faziam rodinha na Praça Getúlio Vargas e fez aquele lamento: “Uma pessoa tão boa…”. Foi uma comoção geral. Não me lembro bem a data, mas era inicinho dos anos 1970.

Ia dar uma da tarde e mamãe estava preparando a mesa para o almoço, ia ter rabada com baroa e dobradinha com feijão branco que tinha sobrado da sexta.

Naquele tempo, não havia em Formiga esses modernos velórios que existem hoje. Quando alguém falecia, arredavam o sofá da sala, colocavam dois tamboretes e o caixão em cima. Duas velas e família chorando completavam a cena.

Assim que mamãe chamou com o seu tradicional “tá na mesa”, ouviram-se do alpendre duas palmas. Era o Fernando Gomes da Gráfica e o Bebeto Alfaiate, eles quase morreram de susto quando meu pai foi atender. Depois vieram o Vicente da Casa 505, o Estácio Vieira da Nova América e o prefeito, Seu Arnaldo Barbosa.

Ninguém entendeu nada. Todo mundo ficou feliz em ver o papai vivo e logo se lembraram que ouviram a má notícia do Landuca. Não deu nem para papai almoçar, de cinco em cinco minutos chegava alguém para consolar a família. Nunca vi mamãe com tanta raiva, virou uma onça.

No domingo pela manhã, logo depois da missa das oito na Matriz São Vicente Férrer, papai vê o Landuca se dobrando de rir atrás de um monumento de propagandas que existia com uma televisão na Praça Getúlio Vargas. Era em frente ao Bar Tropical, que virou o Asa Branca.

Papai, quis reclamar, mas não teve jeito. Cada um que chegava apontava e perguntava às gargalhadas: “Uai, morreu não, sô?”. Por uns dias, todo mundo lá em casa recebeu condolências. Na Escola Normal, os meus professores e os de minha irmã Cecília faziam fila para lamentar. Até a diretora, Dona Sônia de Freitas, veio nos abraçar.

Para que tudo se esclarecesse o mais rápido, papai procurou dois queridos amigos e pediu para que eles socorressem, para que fizessem de tudo para desmentir a história de sua morte: o Vicente Vilela e o Landico. Lembro-me até que o radialista iniciava seu programa “Casa de Caboclo” pela “ZYB-6 Rádio Difusora Formiguense” mandando aquele “Bom diaaa, Seu coló!!!”. O Vicente entrega um pão e comentava que tudo estava normal lá em casa e que papai estava forte como um coco.

Um mês depois, tudo era passado e ninguém mais se lembrava. Foi quando seu Vicente, um gozador pior do que o Landuca, começou a comentar: “Dessa vez foi mesmo, agora foi… coitada da Dona Cidinha [minha mãe]”. E o Landico, outro divertido, no microfone da rádio: “Pois é, Dona Cidinha, a vida é assim mesmo, conte com o nosso abraço pra senhora e pros meninos. Deus que dê consolo…”.

Era pra ter sido um novo Deus nos acuda, só que dessa vez, escolados, papai e mamãe adoraram e levaram na esportiva. Ela fritou torresmos e fritas para que chegava, papai abriu um garrafão da pinga do Zé Brinquinho e mandou chamar o Vicente e o Landico para a festa de mais uma ressureição.

Como ele não ligou de falecer pela segunda vez, ele só foi morrer de verdade em Belo Horizonte em agosto de 2001, com 81 anos. Só que dessa vez foi desanimado, ninguém foi ao velório.