Opinião: Reconciliação não elimina condenação por violência doméstica

Maria Lucia de Oliveira Andrade (de Formiga/MG)

Opinião: Reconciliação não elimina condenação por violência doméstica
Maria Lucia de Oliveira Andrade é advogada




São casados há seis anos e têm um menino de quatro anos. O relacionamento sempre sofreu altos e baixos, devido ao comportamento agressivo do marido. Ela procurou ocultar isso da família, pois se envergonhava e se envergonha da situação. No entanto, a situação ficou fora de controle após uma comemoração de aniversário.

Todos os familiares e amigos se divertiam, enquanto o churrasco e a bebida corriam soltos. Ao som de uma música sertaneja apaixonada, um primo a tirou para dançar. Outros casais se juntaram a eles, dançando em par. O marido, que, até aquele momento, estivera na sala, chegou à varanda. Ela percebeu, pela fisionomia dele, que ele não gostara do que vira. Encheu-se de temor, prevendo uma cena quando todos saíssem.

E foi isso mesmo que aconteceu. Tão logo saiu o último convidado, ele avançou em sua direção, desfechando um soco direto no olho dela. Com a violência do golpe, foi lançada ao chão. Ele a arrastou, enquanto a insultava pelo fato de ter dançado com o primo. Pela primeira vez, ela gritou por socorro. Até então sempre sofrera calada um tapa ou outro, mas o marido, dessa vez, estava totalmente fora de controle.

Uma vizinha acudiu ao grito dela e acionou a polícia. Entrou na varanda e pôde ainda assistir aos golpes que o marido desferia contra ela. A essa altura, dois outros vizinhos chegaram e o contiveram. Ela foi socorrida e levada ao hospital, onde foi feito exame de corpo de delito, constatando-se as lesões que ela sofreu. O marido foi levado pelos policiais.

O juiz determinou medida protetiva, de modo que o marido ficou proibido de se aproximar dela, de contatá-la por qualquer meio de comunicação e de frequentar sua casa.

Porém, familiares vinham contar a ela sobre o arrependimento dele. Além disso, ela assistia, diariamente, ao sofrimento do filhinho por estar distante do pai. A decisão que havia tomado de pôr fim àquele relacionamento marcado pela violência foi perdendo consistência, e ela foi relativizando o mal que sofrera. Cobrava-se, questionando-se se não estava sendo dura demais com ele.

Fragilizada, aceitou conversar com ele. Ele lhe falou do resultado do processo que havia sido aberto contra ele devido à briga com ela: fora condenado a três meses de detenção, em regime aberto. Ele lhe implorou que reatassem o casamento. Ela lhe perguntou como ficaria a situação do processo e da medida protetiva de afastamento que ele tinha de cumprir. Ele lhe disse que, se reatassem o relacionamento, ficaria livre disso tudo.

Ela me confessa que não consegue deixar de se sentir culpada pelo que ele estava enfrentando na Justiça. Se não tivesse dançado com o primo, nada daquilo teria acontecido.

Percebo que está diante de mim mais uma mulher tão fragilizada, tão acostumada a ser violentada física e psicologicamente, tão dependente emocionalmente do marido, que não consegue ver que ela própria é a vítima. Não consegue ver que nada, nada, nada justifica a agressão que sofreu.  Mais uma vez, estou diante de um caso em que o agressor consegue transferir para a mulher a culpa pela violência praticada contra ela.

Converso com ela sobre isso, mas percebo que são limitadas as minhas palavras. Ela não me parece pronta para perceber que sua autoestima foi destruída e que não deve submeter a si mesma e ao filho a um relacionamento adoecido pela violência. Se ele não buscar tratamento e orientação psicológica, continuará aterrorizando os dias dela.

Ela me pergunta se ele ficará livre da condenação e da medida protetiva caso os dois reatem o relacionamento.

Explico-lhe que, se pretende reatar o relacionamento como forma de retirar a condenação contra ele e de afastar a medida protetiva, isso será em vão. Quando se comete um crime de violência ou grave ameaça contra uma mulher, no âmbito das relações domésticas, o fato de haver uma reconciliação do casal não extingue a condenação.  Mesmo que ela venha a consentir com essa reconciliação, não se elimina o mal causado pela conduta dele. Assim, também não se elimina a medida protetiva determinada pelo juiz. Quando ele se aproximou dela para terem uma conversa, ele descumpriu essa medida, e isso é desrespeito a uma ordem judicial expressa. Cometeu um ato ilícito, agora contra a administração da Justiça.

Percebo que ela fica apreensiva com essa minha resposta. Possivelmente, está prevendo a reação dele quando souber que não se livrará da condenação. Considerando o que ela me contou sobre o comportamento agressivo dele, posso imaginar tal reação. Sorte dela que não lhe dará essa informação pessoalmente, pois pelo menos um ponto ela entendeu bem: existe uma medida protetiva de afastamento que ele precisa cumprir.

 

Maria Lucia de Oliveira Andrade

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