Opinião:Pai indigno

Maria Lucia de Oliveira Andrade (de Formiga/MG)

Opinião:Pai indigno
Maria Lucia de Oliveira Andrade é advogada




Confesso que, vendo os três homens altos, fortes e bem-apessoados, fico imaginando como, às vezes, são surpreendentes as combinações genéticas, pois a mãe deles, de quem eu fora vizinha quando adolescente, era pequenina e frágil.  Era tão frágil que faleceu quando o mais velho dos três não tinha completado oito anos. Relembro com eles o tempo em que convivemos, e eles ficam felizes em ver que a mãe é lembrada.

Pergunto-lhes pelo pai, e eles se entreolham antes de me dizerem que me procuraram exatamente por causa dele. Contam-me que, assim que a mãe faleceu, ele entregou o filho caçula para uma prima criar. Quanto aos outros dois, ele chegou a entregá-los para uma senhora que vivia em outra cidade e que ninguém da família conhecia. Um tio, irmão da mãe deles, ao saber disso, foi imediatamente atrás da tal senhora e os trouxe de volta, assumindo a responsabilidade de criá-los.

O sofrimento do caçula era intenso por estar longe do pai. Chorava, todos os dias, pedindo para voltar para ele. A prima percebeu que não deveria expor a criança a tanta dor e quis devolvê-la, porém o pai se recusou a recebê-la de volta. Àquelas alturas, ele já estava namorando outra moça, com quem veio a se casar e a ter uma filha. Mesmo casado, não quis reaver os filhos nem lhes prestar qualquer assistência.

Aos poucos, os três foram entendendo que, para o pai, eles não tinham nenhuma importância. Reconheceram como sua verdadeira família aquela formada pelas pessoas que os acolheram. Quando encararam corajosamente essa realidade, puderam seguir adiante e construir seu próprio caminho. Estudaram, conseguiram bons empregos e levavam uma vida tranquila. Nunca mais viram o pai, que fizera questão de romper qualquer laço com eles.

Souberam, em algum momento, por meio de parentes, que ele se divorciara da segunda esposa. Mesmo anos após esse divórcio, não faltava gente para tecer comentários ácidos sobre o fato de ele ter pagado pensão alimentícia à filha até ela se formar na faculdade, e, por outro lado, nunca ter dado um centavo a eles.

A vida prega suas peças – é o que me dizem, explicando-se em seguida. Agora, tantos anos depois, o pai se lembrou de que eles existem. Ele ajuizou uma ação de alimentos contra eles e contra a filha. Está requerendo pensão alimentícia à proporção de 30% do salário mínimo para cada um.

Alega que vive em um lar para idosos, onde investe integralmente seu salário mínimo como aposentado, e que precisa de recursos para medicamentos e vestuário. Diz que, durante um tempo, recebeu uma modesta ajuda financeira da ex-mulher, mas isso cessou. Também alega que amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade é dever dos filhos.

Os três me dizem saber que, de acordo com a lei, parentes podem pedir uns aos outros os alimentos de que necessitam para viver de modo compatível com sua condição social. Mas, na realidade da experiência deles, com um pai que nunca lhes prestou assistência, essa obrigação continua valendo? Acham injusto serem chamados de filhos agora, quando não foram considerados como tal em momento algum.

Os dois que foram criados pelo tio falam da infância e da adolescência difíceis que tiveram em meio à pobreza. Foram vários os momentos de fome. Mesmo assim, embora tivesse os próprios filhos, o tio nunca os abandonara à própria sorte. Já o pai, mesmo sabendo das dificuldades deles, nunca os socorrera.

Para eles, o laço sanguíneo com o pai importa menos que os vínculos de afeto que construíram com o tio e a família deste. Não teriam nenhuma dúvida em prestar assistência a esse tio, mas ao pai ausente têm certeza de que não querem fazê-lo.

Pedem-me que os defenda na ação de alimentos, que relate ao Juízo o abandono pelo pai, que demonstre a indignidade dele e, com base nisso, requeira que sejam liberados da obrigação de prestar uma pensão alimentícia a ele.

Explico-lhes que, de fato, a Constituição Federal estabelece que é dever dos filhos amparar os pais. Porém, o dever de assistência não advém simplesmente do parentesco sanguíneo. Ele advém também daquilo que faz uma família ser família: o afeto.

Há de se levar em conta a situação concreta vivenciada por eles. Fica evidente que o pai deles não lhes demonstrou afeto nem solidariedade, manifestações do que entendemos como família. Agiu com indignidade e não exerceu o poder familiar em relação aos três, abandonando-os. Pelo que me contaram, exerceu seu papel de pai apenas com a filha do segundo casamento.

Se os três conseguirem levantar provas de que o pai, em momento algum, exerceu efetivamente o poder familiar em relação a eles e que os abandonou material e afetivamente, é provável que o Juízo acolha sua defesa. O caso não é muito comum, mas já existem decisões nos Tribunais reconhecendo que, se um pai abandona os filhos e não lhes presta nenhum auxílio, estes não são obrigados a lhe prestarem alimentos. O simples vínculo biológico (os laços de sangue) não é suficiente para fazer valer esse direito.

Acertados nossos próximos passos, eles se vão. Antes, um deles me pergunta se conheço esta passagem da segunda Carta de Paulo aos Coríntios:  "Aquele que semeia pouco também ceifará pouco; e o que semeia com fartura também ceifará com abundância." Conheço, sim. Sábia. Muito sábia.