Opinião: Reconhecimento pós-morte de maternidade socioafetiva

Maria Lucia de Oliveira Andrade (de Formiga/MG)

Opinião: Reconhecimento pós-morte de maternidade socioafetiva
Maria Lucia de Oliveira Andrade é advogada




A mãe faleceu há quinze dias, vítima de câncer. Ela sofrera demais, por isso ele consegue aceitar melhor sua partida. Alívio – era disso que ela precisava. Para ele, ficaram a saudade e a falta daquela mulher amorosa que iluminara sua vida. Quando pensava nela, vinha-lhe sempre a imagem da esteira de luz que a lua cheia deixa nas águas de lagos e rios. Sua mãe se fora, mas deixara um rastro de luz e amor que se espraiaria pela vida inteira de quem convivera com ela.

Rememora situações vivenciadas com a mãe, compartilhando comigo intimidades da sua família. Ouço-o e me vejo a pensar que eu gostaria de deixar lembranças tão boas quanto as que a mãe dele deixou. Da nossa vida finita o que perdura e se eterniza são as lembranças que deixamos; que sejam boas, portanto.

Passando a me relatar o que o trouxe a mim, conta que a mãe dele criou, desde os dois anos de idade, uma sobrinha. Esta, órfã de pai e mãe, falecidos em um acidente automobilístico, cresceu como se filha fosse. Ele e os outros dois irmãos tinham, à época, oito, dez e doze anos. Acolheram a menininha e aprenderam a gostar dela. Quando ela chegou à adolescência e juventude, opinavam sobre as amizades dela e sobre os rapazes por quem se interessava e namorava. Viam-na como irmã da qual se deve cuidar.

Constituíam uma família, sem que a mãe fizesse distinção entre os filhos biológicos e a sobrinha. Via esta como uma filha. Em algumas ocasiões, a mãe expressou desejo de adotá-la oficialmente, mas sempre havia alguma demanda financeira a priorizar. Já em condições financeiras muito melhores, não conseguiu fazer isso antes de falecer.

Isso não saiu da cabeça dele após a morte da mãe. Conversou com a prima, a qual via como irmã, e sugeriu a ela que ajuizasse uma ação de reconhecimento de filiação socioafetiva post mortem cumulada com petição de herança. Sendo reconhecida a filiação, ela poderia ser incluída na partilha dos bens deixados pela falecida. Ela disse que até poderia fazer isso, não pela partilha, mas pela felicidade que sentiria ao ter em seu registro de nascimento o nome daquela que a criara e que tanto amor lhe devotara.

Ocorre que, tão logo souberam que seria proposta essa ação, as duas filhas do irmão mais velho dele, que falecera três anos antes, deixaram claro que a contestariam.  Querem que o patrimônio deixado pela avó seja partilhado somente entre os dois filhos vivos e elas, netas, visto que o pai delas já faleceu. Argumentaram que, se a avó quisesse adotar a sobrinha que criara, teria feito isso.

Ele e o irmão ficaram perplexos com a resistência das sobrinhas. Deram-se conta, naquele momento, de que elas nunca nutriram afeto verdadeiro pela “tia”. Estranharam essa atitude, pois a mãe deles, avó delas, nunca fizera nenhuma distinção entre eles. A família sempre se apresentara como composta por quatro filhos. Desistiram de tentar convencer as sobrinhas de que adotar era vontade da avó. Por outro lado, mantiveram a decisão de ajudar a irmã de criação a formalizar sua filiação socioafetiva. Por isso, ele quer saber que chances ela tem de conseguir isso.

Explico-lhe que será preciso demonstrar no processo, por meio do depoimento de testemunhas e de documentos, que havia uma relação materno-filial entre a mãe dele e a sobrinha que ela criou desde pequenina. O fato de ele e o irmão a reconhecerem como irmã com direito à herança da falecida e afirmarem que havia uma relação de mãe e filha entre as duas será importantíssimo para que seja declarado o reconhecimento.

A filiação socioafetiva, de acordo com a especialista em Direito de Família, Maria Berenice Dias, configura-se como uma modalidade de parentesco civil de origem afetiva. O reconhecimento da posse do estado de filho pode dar-se “quando o filho é tratado como tal, criado, educado e apresentado como filho pelo pai e pela mãe;  quando usa o nome da família e assim se apresenta; quando é conhecido pela opinião pública como pertencente à família de seus pais”. Esses são fatos aparentes que podem confirmar a filiação socioafetiva.

Comprovando-se que as duas conviviam de forma respeitosa, que o vínculo entre ambas ultrapassava a relação tia-sobrinha, configurando-se como relação materno-filial estabelecida publicamente e de modo firme, o Juízo acolherá o pedido de reconhecimento. Quando se reconhecer a filiação socioafetiva, a prima, que passará oficialmente a ser irmã deles, terá direito a parte da herança.  

Antes de ele ir embora, expresso minha admiração por ele e pelo irmão, por estarem ajudando a concretizar o desejo da mãe falecida, mesmo que, com isso, seja diminuída a parte da herança que cabe a cada um. Outros fariam questão de esquecer isso, interessados tão somente em abocanhar patrimônio maior. É muito bom ver valores humanos se sobrepondo a interesses financeiros.