Conto: Entre o ouro e a prata

Manoel Gandra (de Formiga/MG)

Conto: Entre o ouro e a prata
Manoel Gandra é jornalista, compositor, poeta e escritor




Suzana correu pela pequena sala, entrou no banheiro, ligou o chuveiro e deixou a água escorrer sobre seu corpo ainda vestido.

Agachou-se e chorou em soluços.

Maria Inês, sua mãe que há cinco anos se definhava na luta contra a metástase de um câncer no seio, anunciou que estava desistindo. Chamou a filha, pediu para os mais novos para saírem do quarto e revelou a ela o nome de seu verdadeiro pai.

Meses atrás, Suzana tinha lido nos classificados do jornal “O Pergaminho” um anúncio de emprego. Uma idosa de 90 anos necessitava de cuidados especiais.

Quem fez a publicação foi o empresário Luciano Pires, um homem de negócios dono de um grande supermercado. Ele era filho de Dona Emengarda, que pelo passado da vida, tinha nítidos sinais de demência.

O quintal de sua casa com o de sua mãe se comunicavam por um portão de ferro, que só era fechado à noite quando uma cuidadora assumia suas funções.

Suzana tinha abandonado os estudos assim que sua mãe Maria Inês caiu de cama. Passou a ser pessoa prendada nos afazeres. Como cuidava dos pequenos irmãos, aprendeu a lavar e a passar, tinha desenvoltura especial com a limpeza da casa e, na cozinha, preparava os mais diversos pratos. Foi a primeira a pedir a vaga e logo estava contratada.

Luciano Pires estava chegando aos 50 anos. Casado com Lourdinha há 24, tinha três filhos, e já pensava no festão que faria no Country Clube para comemorar as Bodas de Prata.  Bem conceituado e cheio de amizades, tinha fama de pessoa séria e austera. Religioso, não perdia o terço dos homens nem a missa das oito aos domingos.

Suzana começou a trabalhar já no dia seguinte e, pela formosura, acabou chamando a atenção do empresário. Ele ficou contando de sua vida, falando de suas qualidades. Ele não perdia nenhuma oportunidade de se insinuar para aquela mocinha ingênua e de aparência angelical.

Como que um protetor nas melhores das intenções, Luciano mandou abrir uma conta para Suzana em seu supermercado e disse a ela que poderia pegar o que quisesse, mas sempre alertava que ninguém poderia ficar sabendo, temia que alguém insinuasse alguma coisa.

Luciano estava sempre lembrando que era uma pessoa muito boa, influente e que, quanto mais perto dele ela estivesse, menos coisas faltariam na sua dispensa. Aquele homem de bem que comungava semanalmente foi, aos poucos, foi revelando-se nem tão santo assim.

Foi ganhando a confiança de Suzana. Até que um dia deu um passo a mais nos seus já costumeiros gracejos. Foi em uma tarde em que Dona Emengarda dormiu mais cedo, que ele a pegou pela cintura e abraçou-a dizendo que não aguentava mais de tanto desejo. Suzana, que há pouco tinha feito 17 anos, não demonstrou resistência e se entregou ao empresário.

Desde aquele dia, Luciano só não a abordava a mocinha quando Lourdinha ia visitar a sua mãe. Nas encomendas do supermercado, sempre havia um agrado indo junto do arroz, do feijão e do óleo. Teve até uma vez que um embrulho da loja Nova América apareceu entre pacotes de café e farinha de trigo: um lindo vestido branco com listras vermelhas.

Era uma tarde chuvosa, quando, por uma fresta da porta do quarto de Dona Emengarda, Suzana viu Luciano abrindo um cofre que ficava atrás da velha cristaleira da copa. Junto com Lourdinha, ele admirava o ouro e as jóias que sua mãe havia guardado por toda a vida. Falaram dos valores, da história das peças e das pedras preciosas de cada uma. Juntaram tudo e fecharam o cofre assim que viram a silhueta de Suzana refletida pelo vidro da cristaleira.

Naquele dia em que sua mãe a chamou ao leito, Suzana não tinha feito nada na casa de Dona Emengarda, apenas satisfez os caprichos mais sujos de Luciano, que, apesar de sórdidos, garantiam a feira no final do mês.

Debaixo do chuveiro, a mocinha em soluços, só pensava no nome que ouvira de sua mãe. Sua cabeça rodava, cada momento voltava como um pesadelo infindo: “O seu pai é Luciano Pires, o dono do supermercado”.

Maria Inês, com a voz fraca, contou que trabalhou na casa dele há vários anos e que, logo que uma empregada mais nova apareceu para ser a arrumadeira, ele a mandou embora. 

Suzana chorava copiosamente, ela só parou quando ouviu em meio ao barulho da água do chuveiro que seus irmãos batiam na porta gritando que sua mãe tinha parado de respirar. A enferma Maria Inês morreu antes de tomar o remédio das seis sem ter ficado sabendo que sua filha trabalhava na mesma casa onde ela foi gerada.

No outro dia cedo, o velório. Amigos e vizinhos faziam filas para os abraços de condolências e sentimentos. Encaminhado o corpo ao Cemitério do Rosário, Suzana volta pra casa e vai ao guarda-roupa, veste o vestido branco com listras vermelhas da Nova América. Olha-se no espelho, estava mais mulher e mais bonita do que quando foi atender ao chamado do anúncio do jornal.

 Suzana sai de casa e vai à residência da velha Emengarda. Ela olha com desprezo e ódio para aquela que fora revelada como a sua verdadeira avó. Foi à cristaleira, jogou pratos e compoteiras no chão chamando a atenção de Luciano e Lourdinha que correram para ver o que estava acontecendo.

O empresário tenta segurá-la, ela esperneia e se debate, ele a leva para os fundos do quintal. Lourdinha corre para acudir Dona Emengarda, que não se dá conta do que estava acontecendo.

Suzana se acalma e, no ouvido de Luciano Pires, sussurra em tom ameaçador: “Ou me dá todo o ouro ou não haverá as Bodas de Prata”.

Poucos dias depois, a festa no Country Clube estava maravilhosa. Uma comemoração digna de 25 anos de amor, fidelidade e carinho. Tudo celebrado com toda pompa e glamour que a data merece.

Ainda mais demente, Dona Emengarda, que não foi à festa, nem se dava conta de que no lugar da cristaleira foi colocado um armário de cozinha.

Agora sócia do Country Clube, Suzana com sua taça de vinho branco observa de longe, da beira da piscina, todo aquele movimento.

 

Do livro Antologia Literária Primavera