Crônica: Assombros

Rubem Alves (1933-2014)

Crônica: Assombros
O Pergaminho’ publica crônicas de Rubem Alves por ter recebido autorização escrita do próprio autor




Entre as alegrias que tenho em Campinas estão os momentos em que caminho na Fazenda Santa Elisa. Mas preciso esclarecer o que quero dizer por “caminhar”. O dicionário define caminhar como “percorrer andando”, “percorrer caminho a pé”. Trata-se de um sistema de locomoção que se vale das pernas e dos pés. Quando uma pessoa diz: “Eu vou caminhar”, ela está dizendo que, por um certo período de tempo, vai se dedicar a mover pernas e pés carregando o corpo. Essa referência ao corpo é importante porque, na compreensão moderna, o caminhar é um ato total – e não apenas de pés e pernas – e o corpo é o peso que pés e pernas carregam com o objetivo médico e atlético de exercitar músculos, coração, circulação. Tanto é assim que é comum ver-se caminhantes com os dedos no pulso e os olhos no relógio para conferir a freqüência dos batimentos cardíacos. Esse exercício se faz por razões médicas, para combater colesterol, diabetes, obesidade, veias entupidas etc. Caminha-se por dever. “Eu devo caminhar...” Razão por que, com freqüência, os caminhantes olham para o chão com rosto sério e consultam o relógio para ver se já está próximo o fim da obrigação. Deveres são sempre chatos.

Mas nas minhas caminhadas esses objetivos louváveis e salutares são apenas efeitos colaterais. Não caminho por dever. Caminho por prazer. O que me dá alegria ao caminhar não são os possíveis benefícios médicos dessa prática, mas as excitações dos meus sentidos. Caminho para alegrar os meus olhos, os meus ouvidos, o meu nariz, a minha pele... Caminho para fazer amor com a natureza.

É assim que caminho na Fazenda Santa Elisa. Quem caminha para chegar a algum lugar ou para fazer exercício, isto é, quem caminha por razões práticas, olha ou para frente ou para o chão. Mas eu, que caminho por prazer, olho para todos os lados, para baixo e para cima.

Quem entende de caminhadas é Alberto Caeiro. “Tenho o costume de andar pelas estradas/ olhando para a direita e para a esquerda,/ E de vez em quando olhando para trás... E o que vejo a cada momento/ é aquilo que nunca antes eu tinha visto./ E eu sei dar por isso muito bem”. Não é que ele estivesse vendo coisas não vistas. A coisa estava lá, ontem, e ele a viu. Mas ao vê-la hoje, ela é outra... Porque os olhos mudaram. Alberto Caeiro tinha olhos de criança. E dizia: “Sinto-me nascido a cada momento para a eterna novidade do mundo. Sei ter o pasmo essencial/ que tem uma criança se, ao nascer, reparasse que nascera deveras...” Ele via o mundo sempre pela primeira vez. E aí acrescenta: “Pensar é estar doente dos olhos...”

Acho que só os místicos orientais, depois de muita meditação, atingem a bem-aventurança de não pensar e de ter olhos perfeitos. Mas eu sou doente dos olhos: penso enquanto caminho. Mas meus pensamentos são tão felizes quanto as coisas que vejo e sinto. O próprio Caeiro também se confessava doente dos olhos. Pensava enquanto via. “Quando me sento a escrever versos/ ou passeando pelos caminhos ou pelos atalhos.../ sinto um cajado nas mãos/ e vejo um recorte de mim/ no cimo de um outeiro, olhando para meu rebanho e vendo as minhas idéias...” Rebanho? Sim, tudo aquilo que ele via. Carneirinhos a pular e, junto com eles, idéias a brincar...

Deixo o mundo urbano para trás com seus carros, ruídos e pessoas apressadas e distraídas. A pressa não permite que vejam. Entro pelo portão. À minha frente um gramado imenso. Ninguém. Solidão abençoada. Meus companheiros são os “quero-queros”. Ao me aproximar, eles piam e voam. Sabem que sou um homem. Os homens perderam a confiança das aves. Por isso fogem de mim. Eles têm medo. Fico triste. Gostaria de poder acariciar suas penas com as minhas mãos. Feliz era São Francisco que pregava aos pássaros. Eu me contento em ouvir os sermões que os pássaros me pregam. Os quero-queros abrem as asas na horizontal e planam. Ao aterrissar, entretanto, põem as suas asas na vertical. Para frear. Os aviões também baixam os seus flaps.

Muito antes da engenharia aeronáutica, os quero-queros já sabiam a ciência do vôo e da aterrissagem. Uma fileira de anus caminha vagarosamente olhando para o chão. Uma fileira de soldados que procura atentamente não minas explosivas, mas insetos comestíveis. Procedem de maneira organizada e metódica. E fazem sempre assim. Onde aprenderam? Quem os ensinou? É a sua refeição matutina. Chego às árvores. Enormes. Um bosque. “Ah! Como os mais simples dos homens/ são doentes e estúpidos/ ao pé da clara simplicidade/ e saúde em existir/ que há nas árvores e nas plantas!” Árvores não viajam. Estão felizes onde estão. As folhas secas que cobrem o chão estalam enquanto caminho. Mortas, esperam ser devolvidas à circulação da vida. Para isso é preciso que apodreçam e retornem à terra. Então, subirão de novo pelas árvores e serão – quem sabe? – flores e frutos. Que cairão, apodrecerão e subirão de novo... O ciclo eterno de vida e morte, irmãmente unidas, complementares. “Se a semente caindo na terra, não morrer, fica ela só. Mas se morrer dá muito fruto...” Jesus ouvia os sermões das plantas. Aqui e ali flocos fofos brancos de paina. Que coisa assombrosa é um floco de paina! Como será que as paineiras os pensaram? Como será que elas os fazem? Os flocos são os paragliders das sementes, pequenas esferas negras no seu centro. É preciso que o vento as leve para longe da árvore mãe.

Proximidade entre mãe e filha não faz bem: uma abafa a outra. Até escrevi uma estória infantil sobre isso, O medo da sementinha. Depois é o assombro de uma paineira branca florida. E o assombro de uma flor que se parece com a flor da paineira, vermelha, mas que não é paineira e cujo nome não sei. Paro de olhar para cima. Olho para baixo. Vejo ao assombro das flores pequenas, todas simétricas, perfeitas. Como é que elas sabem? Quem lhes ensinou geometria? Que químico lhes ensinou a arte de produzir cores? “Olhai as flores do campo...” E as flores do capim gordura, brilhando sob a luz do sol? O vento passa pelas minhas orelhas, cantando. De novo lembro-me de Caeiro, meu irmão: “E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido...”

Lembrei-me que, naquela manhã de vagabundagem feliz, havia milhares de crianças em salas de aula. Entre quatro paredes. É o nome de uma peça de Sartre. Numa revista sobre educação eu li uma propaganda de página inteira de uma empresa escolar que anunciava seus materiais didáticos. A prova de que eram bons era “mais de 30 anos de prática nas salas de aula”. Pensou educação, pensou sala de aula. Salas de aula, os lugares onde as crianças são segregadas da vida. Nas salas de aula não há gramados, nem quero-queros, nem anus, nem árvores, nem sementes de painas, nem paineiras floridas, nem florzinhas que praticam as simetrias da geometria. Há livros. Mas os livros não são natureza. Há em alguns países sociedades para a observação dos pássaros. Para ver melhor usam-se binóculos. O que vem primeiro: o assombro do pássaro ou a tecnologia do binóculo? É o assombro do pássaro. Só depois do assombro do pássaro e que vem a tecnologia dos binóculos, para ver melhor o assombro. Quem usa o binóculo está dizendo: “Eu quero ver o assombro do pássaro mais de perto!” Não deveria ser assim nas escolas? Primeiro o assombro da natureza. Depois, então, os livros, cuja única função é a de ser binóculos para se ver melhor?

A primeira missão do educador é mostrar os assombros. Mas eles mesmos, professores, foram separados dos assombros da natureza pelos seus programas. A escola (e os pais) impõe outras urgências. É preciso preparar os alunos para o vestibular. E no vestibular não há questões sobre os assombros do mundo. É mais importante que se saiba sobre os logaritmos neperianos, as fases da mitose e orações subordinadas.

Me deu uma enorme vontade de usar aquele espaço imenso da Fazenda Santa Elisa para educar as crianças. Faz muitos anos, era o fim de uma tarde fria e luminosa, numa praia deserta na Califórnia, vi chegarem crianças, um bando delas, com um jovem, seu professor. Pensei: “Que coisa rara e bonita que um jovem, sexo masculino, tenha escolhido ser companheiro das crianças!” E eu me vi caminhando com um bando de crianças, mostrando assombros, as formas e cores das folhas, dos troncos, dos frutos, das flores, a música das copas das árvores tocadas pelo vento, o vôo dos pássaros, seus nomes esquecidos...

Sei que aquele é um espaço reservado à pesquisa. O que é muito bom. Mas creio também que ele poderia se abrir para as crianças. Não seria possível um convênio com as escolas? Se a Diretoria da Fazenda Santa Elisa e do Instituto Agronômico concordarem com essa idéia, podem contar comigo.

Contei aos meus amigos, no domingo passado, sobre as alegrias dos livros. Uma leitora me mandou um e-mail aflito. Eu havia me esquecido da Isabel Allende! Ela está certa! Isabel Allende é uma alegria! Lê-la é uma felicidade! E hoje estou escrevendo sobre uma outra alegria: a alegria tranqüila, estética, mística e silenciosa que encontro ao levar meus sentidos a passear, em caminhadas. A alegria não mora nem num outro lugar e nem num outro tempo. A alegria mora no aqui e no agora. Ela está bem perto...

Dia 11 de setembro é aniversário do terrorismo que explodiu o World Trade Center.

Terroristas colocam bombas disfarçadas em lugares estratégicos. Pois alguém, inspirado nas táticas do terrorismo, sugeriu que o dia 11 de setembro fosse um dia de terrorismo cultural. E todo mundo pode participar. É fácil. Basta sair pelas ruas e praças com um punhado de livros numa sacola e ir furtivamente os deixando em lugares estratégicos: mesas de bar, bancos de jardim, de ônibus, de igrejas... Faça isso com alguns dos seus livros esquecidos nas estantes.