Crônica: Dos males, o menor...
Rubem Alves (1933-2014)
Um teste para a sua inteligência: de todas as drogas, qual é a pior? Ópio, cocaína, heroína, maconha, crack? Ou, quem sabe, alguma outra que você conheça e que não está na lista. Prepare-se para uma surpresa: a pior de todas, por seu charme, pelo seu consumo generalizado e pelo mal que faz para as pessoas e a sociedade é o álcool. Que o álcool é uma droga, não há a menor dúvida porque pode criar dependência e provoca perturbações nos estados de consciência da pessoa. Sob o efeito do álcool elas deixam de perceber a realidade e desandam a fazer doideiras. Tive um primo que morreu de tanto beber. Ele gostava de fazer viagens noturnas sob o efeito da bebida. Justificava-se, quando advertido sobre o perigo de dirigir naquele estado, dizendo que quando estava bêbado a estrada ficava com o dobro da largura...
As bebidas alcoólicas são responsáveis pela maioria absoluta de atos de violência na casa, contra filhos e mulher, de violência generalizada, de crimes e desastres de automóvel, sem mencionar os seus efeitos sobre a saúde de quem bebe. Uma festa alegre movida ao sabor da inocente cerveja: esse é o cenário perfeito que freqüentemente antecede os velórios, especialmente de jovens e adolescentes.
Em várias partes do mundo há uma violenta campanha contra o fumo, o que está certo. Fumo é droga. Fumo vicia. Fumo faz mal à saúde. Fumo pode matar. Nos Estados Unidos, país que globalizou o charme do cigarro via Hollywood, agora os fumantes são tidos como párias. Não há lugar onde possam gozar o seu cigarro em paz. Fumar é vergonhoso, um defeito de caráter. Lembro-me do inferno que era antigamente viajar de avião. Numa das minhas viagens para o exterior, oito horas trancado naquela coisa sem janelas, fumava-se tanto que o ar ficou totalmente azul. E todos consideravam que aquilo era normal. O único lugar onde eu podia me refugiar da fumaça e encontrar um pouco de ar de verdade era no banheiro. Agora fumar é proibido. Uma amiga me contou que, visitando Nova Iorque, num dia de neve e vento, achou curioso que defronte dos prédios houvesse grupinhos de pessoas reunidas. Não entendeu: reunião do lado de fora do confortável ar condicionado, com um frio daqueles? Mas logo lhe explicaram: eram os fumantes que, proibidos de fumar dentro dos prédios, só tinham a alternativa do frio e vento. Em Nova Iorque agora não se pode fumar nem mesmo nos bares - e não existem áreas separadas para os fumantes. Fumantes não têm direitos. E a implacável perseguição aos fumantes chega a limites entre a grosseria e o cômico. Num período que passei na cidade de Denver, Colorado, meu vizinho de apartamento afixou à sua porta a seguinte advertência: “If you don’t smoke I will not fart...” - “Se você não fumar eu não vou peidar...” Descontado o mau cheiro, é certo que os malefícios do segundo verbo, a longo prazo, são menores que os malefícios do primeiro...
O que não entendo são as razões por que a justa intolerância para com o cigarro não tenha atingido as bebidas alcoólicas. Comerciais de cigarro foram banidos da televisão. Mas a televisão está cheia de comerciais de cerveja em que juventude, sexo, alegria, riso e companheirismo acontecem sob o patrocínio do sacramento “cerveja”. Fim de semana? É churrasco e cerveja...
Os legisladores norte-americanos, marcados pela moral puritana e convencidos dos malefícios do álcool, resolveram acabar com a bebida. Foi lá pelos idos dos anos 20 do século passado. Raciocinaram: o álcool rouba das pessoas suas funções racionais. Roubadas de suas funções racionais, as pessoas se comportam de forma irresponsável. Pessoas irresponsáveis perturbam a ordem pública, são maus cidadãos, eventualmente se tornam criminosas. Segue-se que, eliminando-se o álcool, o país será formado por cidadãos sóbrios e racionais. Assim, passaram a lei que se chamou lei seca. Mas a lei seca teve resultados desastrosos e foi de curta duração. Sobraram alguns resquícios divertidos que ainda vigoravam quando vivi lá. Em certos estados era proibido vender bebidas alcoólicas nas manhãs de domingo porque os cidadãos deveriam estar sóbrios para ir à igreja e ouvir a pregação da pura palavra de Deus. Viajando de avião, as comissárias começavam o serviço de bordo, cerveja, uísque, gin, martini. De repente, paravam tudo. É que o avião começara a sobrevoar o espaço aéreo de um estado onde era proibido vender bebidas alcoólicas nas manhãs de domingo... Voltando à lei seca. O fato é que a realidade social é mais forte que as leis. A lei seca proibia fabricação, venda e consumo de bebidas alcoólicas. Mas não tinha poder para proibir o desejo. Não há formas de se proibir o desejo. E o desejo fica mais forte quando o seu objeto é proibido. Foi nesse vazio que a Máfia entrou. Ela se apropriou do espaço deixado pela proibição. Passou a se dedicar ao lucrativo comércio clandestino de álcool. E, como é óbvio, bebidas alcoólicas clandestinas são muito mais caras que as legalizadas. Os lucros são maiores. A emenda foi pior que o soneto. Antes da lei seca o que havia eram os malefícios da bebida. Agora, aos malefícios da bebida agregavam-se malefícios não sonhados: assassinatos, extorsão, corrupção de policiais, de políticos, de juízes, e as guerras entre as “famílias” na disputa de mercados.
O que é curioso é que, sendo o álcool uma droga potencialmente muito mais perigosa que o cigarro - não sei de violência familiar ou desastre de automóvel que tenha sido provocado por cigarro - haja tanta tolerância para com ele. Na verdade, creio que nem se pode falar em tolerância. Porque “tolerar” se refere a algo desagradável. Tolerar um barulho, tolerar uma dor de cabeça, tolerar um chato... Não se tolera um sorvete, um caqui ou um beijo... A atitude social para com as bebidas alcoólicas não é de tolerância. É de apreciação. Ah! Uma cervejinha gelada, um uísque on the rocks, uma caipirinha... Bebidas deliciosas que fazem todos sorrir (exceto os que estão tomando antibióticos...). Digamos então que as bebidas alcoólicas são drogas deliciosas e perigosas, potencialmente destrutivas, que contam com o sorriso complacente da sociedade.
Seria bom se houvesse um estudo comparativo dos efeitos do cigarro, das bebidas alcoólicas, da maconha, da cocaína, para que pudéssemos conhecer os efeitos destruidores de cada uma dessas drogas. Estudo que apresentasse dados numéricos relativos aos efeitos individuais psicológicos e orgânicos, violência, crime, acidentes, custos financeiros individuais e sociais. No caso das drogas criminalizadas, é importante saber quanto gasta o governo em segurança. Não conheço os dados estatísticos mas tenho a impressão de que as possíveis conseqüências pessoais e sociais das bebidas alcoólicas são muito maiores que as conseqüências pessoais e sociais do cigarro e da maconha.
Creio que poderíamos aprender muito com a experiência norte-americana da lei seca. Porque é essa, precisamente, a situação que vivemos no país, em relação ao tráfico de drogas. Todas as drogas, inclusive o cigarro e as bebidas alcoólicas, causam malefícios. Mas, no caso das drogas criminalizadas, isso é, aquelas cuja produção, distribuição e consumo a lei proíbe, o seu malefício maior não está naquilo que elas podem fazer com os seus usuários, individualmente. Seu malefício maior está no fato de que, por serem proibidas, elas criam o espaço para o estabelecimento de um império paralelo de violência, crime, dinheiro, corrupção, intimidação que coloca em perigo a ordem social. Santo Agostinho, no seu livro A Cidade de Deus, diz que se um bando de criminosos, pelo uso das armas, toma posse de territórios e, pelo medo e pela violência, tem o poder de impor a sua vontade, esse bando se transforma num império porque ao seu poder criminoso se acrescenta a impunidade. O que é precisamente a situação em que estamos. Os traficantes têm mais poder que o estado legal. Ordenam que estabelecimentos comerciais e escolares fiquem fechados e as suas ordens são obedecidas. É preciso compreender que o Brasil foi invadido por alienígenas. É curioso que as forças armadas e a polícia tenham tido capacidade para derrotar os ditos “subversivos” de outros tempos e agora se encontrem impotentes. Alguém sugeriria uma explicação? O fato é que o império do tráfico de drogas, como realidade política, é infinitamente mais perigoso que as drogas, simplesmente. Talvez seja essa a razão para a tolerância para com as bebidas alcoólicas. Se fossem proibidas, elas não desapareceriam. Apenas passariam a circular clandestinamente. Foi o que os legisladores norte-americanos perceberam. Concluíram, então, que era preferível ter alguns cidadãos bêbados pelas ruas nas manhãs de domingo, em estado lamentável mas visíveis e controláveis, a ter a Máfia invisível e incontrolável em operação em todos os lugares em todas as horas do dia.
Música clássica: Para os que já gostam e os que querem aprender a gostar de música clássica eu sugeri o programa da TV Senado, Quem tem medo da música clássica?, apresentado por Artur da Távola. E me esqueci de mencionar o programa Momento Musical, da Rádio Educativa FM de Campinas, 101.9, apresentado por Marco Padilha. Ele vai ao ar às quartas-feiras, das 21h à meia-noite. Vale a pena!
Fomos maus alunos: O normal é dizer “Escrevi um livro”. O Gilberto Dimenstein e eu conversamos um livro. Pois o livro foi a transcrição de uma conversa sobre nossas experiências com a escola. Uma amiga querida, Maria Olímpia, não gostou do título. E me explicou: “Eu ensino inglês. Pois logo após o resultado das últimas eleições um aluno jogou o livro displicentemente sobre a mesa e disse, com o rei na barriga: ‘Não é preciso saber inglês para ser presidente da República.’” É verdade. Tanto assim que temos um presidente que não fala inglês. Mas não é para isso que se estuda inglês: é para se ter acesso a um mundo imenso, rico e bonito, cuja porta se abre com a chave chamada “inglês”. O perigo é que se conclua que o caminho para o sucesso é ser mau aluno. Fomos maus alunos porque não nos interessávamos pelas coisas que os professores faziam de conta que ensinavam. Mas nos interessávamos por outras que nos apaixonavam. E fomos atrás delas... Fomos maus alunos na escola mas fomos bons alunos - eu acho - da vida.