Opinião: O dia da caça

Ana Pamplona (de Formiga)

Opinião: O dia da caça
Ana Pamplona é membro do Coletivo Poesia de Rua




Era sábado depois do almoço. Naquele tempo, do sábado depois do almoço, até no domingo à noite, andar na pacata cidade de Formiga, era como estar nas cidades do velho oeste americano quando chegava algum bandido famoso: absolutamente ninguém nas ruas. Nada, nenhum comércio abria. Nem postos de gasolina, nem farmácias, nem armazéns e mercados. Nada. Era como se alguém decretasse um toque de recolher. Somente o hospital funcionava em regime de urgência. Mais nada. Todos os formiguenses hibernavam em seus sofás ou iam para suas casas na zona rural nos finais de semana.

Não era o caso daquela Moça, que em agosto de 1984, em situação de férias forçadas por uma greve de professores da universidade em que estudava na capital —greve que já durava quase três meses — almoçou e saiu para visitar a Avó, que morava perto, coisa de cinco minutos de caminhada. Não levava nada. Nem doces, nem cestos para apanhar framboesas. Só a vontade de ir.

Haviam vários caminhos. Ao contrário de Chapeuzinho Vermelho, resolveu ir pelo mais prático e com mais visibilidade: a rua do rio. Usava um vestido larguinho de alças, chinelinho de couro, cabelos soltos, nada nas mãos, apenas um anel solitário no dedo anelar da mão esquerda.

Saiu despreocupadamente de sua casa despedindo-se dos Pais. Caminhou um pouco e logo ganhou a Avenida Juca Pedro. Ninguém nas ruas. Absolutamente só, ela parou para observar o querido Rio Formiga. Naquele ano chovera pouco, suas águas estavam calmas e tristonhas.

De repente, surge em seu campo de visão um rapaz vindo na mesma calçada do rio, na sua direção. Era claro, cabelos negros, cortados rentes. Peito nu, usava um short curto, chinelas de borracha. Brincava irreverentemente com a camiseta nas mãos. Ela virou-se e recomeçou a caminhar. Estavam a uns cinquenta metros um do outro. Os olhos de ambos se cruzaram. O olhar dele era de caçador, como se ela fosse a caça. Imediatamente, ela sentiu o coração acelerar, uma fisgada na coluna, um peso no diafragma. As mãos ficaram frias, a boca seca. Era o típico sinal de alerta, a campainha interna anunciando perigo. Era seu corpo — herdeiro dos corpos dos animais — lhe dizendo: fuja! Mas ela não fugiu. Continuaram andando, um na direção do outro. Ele a encarava com a expressão lasciva, de desejo. Com o coração acelerando mais, a Moça olhou para os lados, para trás, ninguém na rua ainda. Seu instinto, o velho sábio que nunca se engana, ordenava-lhe apenas trocar de calçada. Ela não obedeceu. Somente teve nojo dele. Abaixou a cabeça e pensou: “Não vou trocar de caminho. Tenho o direito de andar onde quero. Ninguém determina onde vou passar. Sou livre.” Pensando assim, ela prosseguiu firme em sua decisão — e ele também. Enquanto ela abaixou a cabeça para observar algo no chão, num átimo de segundo, ele a atacou. Foi tão rápido, que quando a Moça deu por si, ele já estava firmemente segurando seus ombros, para dar o próximo passo. Sem acreditar no que estava acontecendo, ela levantou a cabeça e sem ter tempo para encará-lo, ergueu o braço esquerdo em direção ao rosto dele, desferindo-lhe um tapa com o dorso da mão, empregando toda a força que tinha. O golpe o atingiu em cheio no lado esquerdo provocando um corte profundo. O anel solitário aliado à fúria da Moça, fez o estrago. Com o impacto, ele vergou o corpo para trás, caindo sentado na calçada, apoiado com os braços. O sangue lhe escorreu imediatamente pela face até o pescoço. Ela o encarava de cima para baixo, enquanto ele, com uma careta de dor, passava a mão pelo machucado, sem acreditar no que havia acontecido. Furiosa, ainda sem recuperar-se do susto, a Moça começou a chutá-lo nas pernas e no tronco, gritando completamente fora de si:

— Seu m...! Filho da p...! Quem você acha que eu sou? Heimm?!? Seu m...!!

Enlouquecida, enquanto vomitava os impropérios e desferia os pontapés no infeliz, ele tentava fugir deslocando-se para trás, ainda sentado na calçada, como um caranguejo, até que conseguiu levantar-se e correr. Correu, correu, e sumiu por uma das ruas que cortam a avenida do rio.

Com o coração disparado, ela continuou um tempo ainda de pé, observando seu atacante fugir. Passado o momento máximo do stress, seu corpo reagiu molemente, como num efeito rebote, obrigando-a a sentar-se na calçada. Com a boca ainda seca, colocou as mãos na cabeça por entre os cabelos e chorou... Um choro de pura raiva, misturada com revolta e humilhação.

E foi assim, que naquele patético sábado, na cidade fantasma de Formiga, apesar de ter sobrepujado seu sábio instinto, o dia havia sido da caça. E não do caçador.