Opinião: CHUVA, LÁGRIMAS E MÁGOA LAMACENTA
Ana Pamplona (de Formiga/MG)
Grossas nuvens prenunciavam tempestade iminente na quieta cidade de Formiga, estado das Minas Gerais.
Era sexta-feira da Paixão, o vento frio uivava no Beco do Suspiro espalhando-se nos quatro cantos na Praça Olinto Fonseca, fazendo Florduarda arrepiar-se. Ela descia pelo beco com dificuldade por causa do salto alto, pois a ventania a desestabilizava sobremaneira. Chegou à praça um tanto insegura, pois esperava seu amado, Desidério.
Combinara rapidamente o encontro, cinco dias atrás, durante a procissão de ramos. Ele, posicionado estrategicamente atrás dela na fileira dos fiéis; vela queimando em sua mão, a outra a puxar os compridos e negros cabelos da moça, sussurrou em voz nordestina e melosa:
—Minha linda, por esse santo de barro, encontre-me nesta sexta feira, ali pelas 17 horas, na praça do beco que suspira... Esse cabra apaixonado lhe esperará ansioso...
Há tempos eles flertavam discretamente, quando ela aparecia na venda em que ele trabalhava, para as compras com a patroa. Olhavam-se de soslaio, pelos cantos dos olhos, suspirando, faces ruborizadas, sorrisinhos velados. As pessoas comentavam entre si, diziam algo de boca em boca, mas o casal platônico fingia não ver, nem ouvir. Florduarda era órfã de pai e mãe, moça de família humilde e honesta, que havia sido “adotada” por Dona Dorotéia para serviços domésticos.
Enquanto as nuvens negras pareciam despencar com o peso da água, a moça, muito arrumada e cheirando a lavanda, de sombrinha em punho pronta para ser aberta, aguardava ansiosa, o amado e a chuva.
De repente, notou um papel pendurado em um galho baixo de uma Quaresmeira florida. Olhou curiosa, sem saber se pegava o papel. Aproximou-se e viu seu nome do lado de fora do bilhete escrito de forma grotesca: F L O R D U A R D A. O coração da moça disparou e sem hesitar pegou o papel, abrindo-o com sofreguidão. O bilhete dizia, em péssima caligrafia: “Florduarda amada sinto dizer que faltarei ao nosso encontro tive um imprevisto peço perdão mas minha família chegou de Xique-Xique mulher filhos e sogra... outro dia marcamos encontro de novo do seu Desidério apaixonado”. Bem assim, sem vírgulas, nem mais nada.
Naquele momento, um pingo gelado de chuva caiu com força na ponta do nariz de Florduarda, escorreu para o papel manchando as letras mal escritas. Com os olhos fixos no bilhete, ela já não sabia se eram suas lágrimas ou a água do céu que a inundavam de vergonha e decepção.
Enfim, a tempestade caiu com grande violência. A garota se deixou molhar abundantemente, sem tocar na sombrinha. Aguardou um tempo ali, em pé, com os olhos fechados. Ao abri-los, violentamente mastigou um pedaço do papel infame, cuspindo-o no chão com profundo desprezo. Deu um suspiro doído e, altiva, jogou o resto do bilhete no chão. Abriu resoluta a sombrinha, e só então começou a subir o Beco do Suspiro.
Agora já sem lágrimas, mas com a mágoa lamacenta e sombria em seu coração já não tão inocente.