Opinião: A coroa perdida

Ana Pamplona (de Formiga/MG)

Opinião: A coroa perdida
Ana Pamplona é membro do Coletivo Poesia de Rua




Depois de um duro dia de trabalho no consultório, o nosso já conhecido cirurgião Dentista, Toletinho, (Dr. Joaquim Bartolomeu Amâncio de Oliveira) finalmente chega em sua casa, a fazenda Dente de Ouro.

O corpo estava moído pelos muitos atendimentos difíceis. A cabeça estava cansada pelos imprevistos com próteses que não serviram, protéticos que alegam nunca errar em seus trabalhos, pacientes que faltam sem avisar, que esquecem o cartão de crédito e que não ficam satisfeitos com as cores dos seus dentes. Sexta feira braba, como se diz na pitoresca cidade de Formiga, sua terra natal!

Ao abrir a porteira para entrar na fazenda e ser recepcionado por seus cães, Rio Negro e Solimões, sentiu aquela alegria tão peculiar: era o prenúncio de uma noite de descanso, regada a latinha de cerveja, depois de um relaxante banho.

Depois de afagar os fiéis escudeiros caninos (sem trocadilhos), entrou em casa já retirando os sapatos na sala e jogando as chaves na mesa.

Procurou pela esposa, D. Solange, mais conhecida como Xuxu. Ela estava ao telefone e esta, quando o viu, já lhe passou o aparelho, dizendo:

— É um paciente seu, meu bem, daqueles especiais, disse ela dando uma risadinha.

Toletinho não acreditou. O que será dessa vez? Acabara de sair do consultório e já havia alguém lhe chamando?! Não era do tipo que usava celular, justamente para evitar esse incômodo.

Pegou o telefone e soltou um sonoro Alôôô...

— Alô, Toletinho, aqui é o Dito, seu paciente e compadre... Doutor, não vai acreditar, mas, perdi minha coroa...

— Dito? Do Bebelo Alves?

— Sim, isso...

— Como assim, Dito, como foi perder a Zuleika, sua esposa, minha comadre?

— Não, Toletinho, não foi a Zuleika que perdi, foi a coroa que você fez para o meu dente da frente...

— Ah sim, Dito, entendi. A coroa, aquela provisória que fiz há uns 3 anos atrás e que você ficou de voltar na semana seguinte para fazer a definitiva e até hoje, nada? perguntou Toletinho, com aquele tradicional tom de ironia.

— Uai, provisória? Não sei não, compadre, será? perguntou o Dito fazendo cara de paisagem do outro lado da linha.

— Sim, provisória, isso mesmo! Como sabe, ela não serve para ficar muito tempo na boca, é uma peça que precisa ser substituída por outra definitiva e mais apropriada! respondeu Toletinho com pouca paciência.

Enfim, depois de um tempinho de argumentações inúteis de ambos os lados, Toletinho respirou fundo, desligou o telefone, calçou os sapatos, pegou as chaves do carro e dirigiu-se ao consultório a fim de atender o Dito em caráter de urgência, haja visto que seria impossível para o compadre negligente, passar o fim de semana sem o “centroavante” direito, apelido carinhoso que dava aos incisivos centrais.

Após desligar o alarme, e ligar todos os botões para fazer funcionar o consultório, pediu ao paciente que sentasse na cadeira odontológica. Ah... aquela hora mágica em que o Dentista liga a luz do refletor e ilumina a boca do seu paciente... Lá estava o remanescente da raiz, quase “nu”, vestindo apenas um pino de metal fundido. Realmente, nada de coroa colada ao dente.

— Muito bem, Dito. Como você perdeu a peça, vou lhe fazer outra coroa provisória. Terá um pequeno custo de setecentos reais, mais o atendimento de urgência, trezentos e cinquenta reais, será um total de um mil e cinquenta reais... 

— O que?? Mas compadre... vai me cobrar isso tudo?? Por uma pequenina coroa?

— ISSO TUDO? Não, Dito, SÓ ISSO, porque terei que fazer outra coroa, coisa que dá trabalho e bem longe do meu horário normal de trabalho!

Conclusão: o paciente não concordou em pagar outra provisória e disse que ia procurar melhor a coroa perdida em sua casa. Com certeza, a coroa deveria estar em algum lugar que ele esquecera de vasculhar.

E foi assim que aquela sexta feira acabou: o paciente saiu sem o centroavante e Toletinho sem o pagamento, mas com a promessa de que, quando a coroa fosse encontrada, ele acertaria o valor do atendimento. É claro que isso fez com que pela centésima vez, o velho Dentista lamentasse por precisar atender compadres... e até por ter afilhados.

Dali uns poucos dias, volta o compadre Dito ao consultório, portando a bendita coroa provisória, embrulhada em um pedaço de papel higiênico, dizendo que a Zuleika, sua esposa a havia encontrado. 

Para a alegria de todos, a coroa foi cimentada no dente, o paciente fez o pagamento, não sem reclamar do preço do atendimento, é claro, e não sem o espirituoso Dentista dizer:

— Meu caro compadre, se você não sabe fazer nem colar uma provisória, contente-se em pagar por esta e não perdê-la pelos próximos 3 anos!

O ilustre paciente saiu prometendo que voltaria no próximo mês para fazer a definitiva.

No dia posterior a esse fato, andava Toletinho ali pelas bandas da Praça Getúlio Vargas, quando encontra sua comadre, a Zuleika, esposa do Dito do Bebelo Alves.

Após os cumprimentos, Toletinho pergunta à comadre:

— E então, comadre, ainda bem que deu tudo certo com o Dito encontrando a provisória perdida, heim?

Zuleica olhou o doutor com uma carinha de nojo e disse:

— Uai, compadre, sinceramente, depois dele ter engolido a coroa, eu não sei se podemos dizer que deu certo né?