Opinião: O engano
Ana Pamplona (de Formiga)
Na volta do trabalho, Fernando entrou no ônibus desanimado com aquela segunda-feira. Dia difícil. Sua chefe estava inspirada: muitas cobranças e chamadas de atenção para as metas que não foram, mas que precisariam ser alcançadas ainda naquela quinzena. Sentou-se numa poltrona da janela e colocou os fones de ouvido. “Vamos ouvir uma música relaxante para esquecer a pressão daquele dia terrível; creio que Children of the Grave, do Black Sabbath, está ótimo”, pensou sorrindo de leve.
Passados alguns quarteirões, o veículo para no próximo ponto e entra um grupo de moças com uniformes de time de vôley. “Olímpico Clube”, dizia nas costas da camiseta delas. Eram três, todas bonitas, suadas e muito barulhentas. Sentaram-se a duas fileiras à frente dele. Riam e comentavam sobre o treino. Uma delas chamou a atenção de Fernando pela beleza excêntrica. Alta, nem magra nem gorda, pele negra, cabelo preso no alto da cabeça, lábios carnudos e olhos amendoados. “Seria a Lisa Fisher brasileira? Que deusa!” — pensou um Fernando, já apaixonando-se em pleno caos daquela segunda-feira que considerava perdida. Pelo visto, não estava.
A viagem prosseguiu e ele não tirava os olhos da moça, que conversava e ria com as amigas. Passados alguns quarteirões, elas desceram num determinado ponto, sem que ele conseguisse ouvir o nome da sua deusa negra. Apenas acompanhou-a pela janela do ônibus. Olhando para o banco em que ela estava, percebeu que havia esquecido um objeto. Aproximou-se, era uma joelheira. Estava escrito “Fernanda” nela. Pegou, colocou na sua mochila. Menos mal. Agora havia uma desculpa para encontrá-la. Provavelmente morava por ali e ele descobriria onde.
Fernando passou a semana pensando na moça. Mas não mais a encontrara no ônibus. Chegou a variar os horários de saída do trabalho, para tentar que coincidisse o encontro. Nada. Concluiu com tristeza que, certamente ela não morava por ali, apenas havia tomado aquela linha naquele dia, para ir em algum lugar. Perguntou ao motorista que estava naquele dia. Não conhecia. Que pena. Mas iria descobrir a identidade dela, para isso existia a internet.
Pesquisou no Facebook e em outras redes. Encontrou um perfil que lhe pareceu ser o dela, o nome era Fernanda! Coincidência incrível, mesmo nome seu! Era o universo conspirando a favor de ambos. Tinha certeza. Resolveu entrar em contato. Enviou mensagem pelo Messenger: “Olá, meu nome é Fernando, te vi outro dia no ônibus e você esqueceu sua joelheira. Como faço para devolver-lhe? Abraço”. Pronto. A isca fora lançada. Agora era aguardar a resposta.
Abria o Messenger muitas vezes ao dia, ansioso pela resposta da sua deusa. Alguns dias depois, recebeu a tão esperada mensagem: “Olá! Sou a Fernanda, também jogo vôley, mas não sou a Fernanda que você procura. Entretanto, sei de quem se trata. Vou te passar o perfil e o contato dela. Abraço! “ E passou. Coisa estranha a natureza humana. Ele ficou decepcionado, sem saber porquê! Aquela Fernanda tinha algo especial, porém não saberia dizer o quê, uma vez que eram parecidas a ponto de ele confundi-las. Respondeu, agradecendo, e encompridou a conversa. Para despistar o verdadeiro interesse, perguntou algumas coisas sobre a outra Fernanda, ela respondeu, dizendo que sabia muito pouco sobre ela. Ele continuou a conversa, mas agora, em tom bem-humorado disse:
— Veja só, mirei numa Fernanda e acertei em outra!
Ela respondeu no mesmo tom:
— Veja só, o meu caso foi pior: não mirei em nenhuma Fernanda, mas fui acertada por um Fernando!
Depois de muita conversa pelo Messenger e outros meios, poderia imaginar o caro leitor, que o caso daria em casamento? Pois deu! E um ótimo casamento, por sinal!
Por via das dúvidas, a deusa Fernanda jamais apresentou seu marido à outra Fernanda. Mesmo assim, no escritório da casa dos dois, há um quadro, com uma joelheira dentro e um poema de Carlos Drummond de Andrade, chamado “Cantiga de enganar”, do livro Claro enigma. Entre outras coisas belas e singulares, ele diz:
“ (...) menos que simples palavra,
menos que folha no outono,
a partícula sonora
que a vida contém, e a morte
contém, o mero registro
da energia concentrada.
Não é nem isto, nem nada.
É som que precede a música,
sobrante dos desencontros
e dos encontros fortuitos,
dos malencontros e das
miragens que se condensam
ou que se dissolvem noutras
absurdas figurações. (...) Meu bem, assim acordados,
assim lúcidos, severos (...)
ou assim abandonados...”