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Ana Pamplona (de Formiga)

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Ana Pamplona é membro do Coletivo Poesia de Rua




Eram dois amigos: Nelson e Milton. Desde a infância. Aliás, naquele tempo eram Nelsinho e Miltinho. Nasceram no mesmo dia, moravam no mesmo bairro, brincaram juntos, estudaram juntos, e até trabalharam juntos, vendendo os doces da D. Cândida, vizinha de ambos, numa época em que as crianças podiam trabalhar aqui em Formiga. Eram inseparáveis. Os meninos cresceram e viveram aquela amizade marcada com a intensidade de cada período da vida.

Na infância, brigavam muito, implicavam-se mutuamente, disputavam corrida e bolinhas de gude; as figurinhas dos álbuns de futebol e a raiva das garotas “purgantes” da escola. Claro, que um deles era torcedor do Atlético mineiro, o outro, do Cruzeiro. Fizeram as aulas de catecismo e a primeira comunhão. Nelsinho protestou um pouco, por não concordar com a história de Adão e Eva, mas vá lá — não podia deixar o melhor amigo sozinho naquele momento. Além do mais, a família o obrigou.

Na adolescência, curiosamente, continuaram brigando bastante e disputando corrida, porém, a bola, agora, era dividida nos campinhos de várzea. As figurinhas, também de futebol, só que misturadas com as de mulher pelada. Quanto às garotas da escola, continuavam “purgantes”, no entanto, naquele momento a dupla estava mais interessada em beijá-las sem compromisso. Deveriam também fazer a crisma juntos, mas Nelsinho se recusou. Disse que “agora já sou quase um adulto”, considerava que já poderia decidir sobre religião e nada o fez voltar atrás. E assim seguia a amizade dos dois.  

A vida adulta chegou para Nelsinho e Miltinho com seus desafios grandes e pequenos, os problemas habituais, suas contradições e alegrias. Nelsinho tornou-se professor de filosofia e Miltinho, contador. Casaram-se e constituíram suas famílias, que também se tornaram amigas. Continuavam cada vez mais próximos, embora divergissem em quase tudo. Jogavam bola, assistiam futebol, jogavam xadrez, mas sempre com as implicâncias habituais. Discutiam e reconciliavam-se com a mesma facilidade, como desde sempre fizeram. Era uma amizade bonita e vulcânica ao mesmo tempo. 

Além do futebol, o campo em que mais divergiam era o religioso. Miltinho se aprimorou nos trabalhos do Catolicismo — tornou-se Ministro da Eucaristia. Devotadíssimo, não faltava às missas um domingo sequer, nem às visitas aos doentes para distribuir a comunhão. Já Nelsinho, talvez pelo pensamento mais racional e a proximidade com a Filosofia, tornara-se espírita ainda na adolescência. Ingressou no Movimento Espírita e não parou mais. Trabalhava firmemente na divulgação do Espiritismo e nas obras de caridade. Entretanto, com o passar do tempo e a chegada de uma relativa maturidade, as discussões passaram a ser mais pitorescas. Nelsinho confrontava Miltinho nos pontos inconsistentes de sua fé, enquanto Miltinho criticava duramente a reencarnação. Dizia que “tal conceito não constava na Bíblia”, ao que Nelsinho respondia que “sim, constava e muito!” e deitava a lhe fornecer as referências que provavam sua crença.  

E assim chegou a velhice de ambos. Agora já bem mais maduros, conversavam sentados em suas varandas sobre as coisas todas da vida, quase sem brigar. Lembravam-se dos tempos de criança e de adolescência e divertiam-se comentando suas estripulias. No entanto, em se tratando de futebol e religião, riam-se um do outro criticando-se sarcástica e amigavelmente.  

— Amigo, como você vai fazer quando estiver no inferno? Tem ar condicionado lá? — dizia Nelsinho em tom mordaz.

— Melhor que você, amigo, reencarnando no Oriente Médio como mulher... —respondia Miltinho contra-atacando.

E davam boas risadas...

Cada um dos dois prometeu ao amigo uma surpresa depois da morte. Deixariam por escrito. O que seria?

O tempo passou e certo dia os dois amigos voltavam de uma pescaria em Ponte Vila, na Brasília azul de Miltinho. Um descuido do motorista, o veículo sai de sua pista e choca-se com uma carreta. Resultado: mortos, os dois amigos. Juntos, como sempre viveram.

Fizeram os velórios também juntos. Os dois caixões lado a lado. Foram enterrados juntos, no túmulo da família do Miltinho. Era um pedido prévio do próprio, com a concordância do outro. E, em cima da pedra de granito que cobria a última morada dos amigos, estavam as duas lápides com as respectivas fotografias. A inscrição de Miltinho dizia: “Em verdade te digo, que ainda hoje estarás comigo no paraíso”. E a de Nelsinho: “Voltaremos logo”.

Alguém saberia dizer se eles apreciaram a surpresa que cada um preparou ao amigo do coração?