Opinião: O legado maléfico do abuso sexual sofrido por uma adolescente
Maria Lucia de Oliveira Andrade (de Formiga/MG)
Fomos colegas da quinta à oitava série, segmento educacional hoje identificado como sexto ao nono ano do Ensino Fundamental. É disso que me lembro quando nos encontramos, por acaso, em uma lanchonete. Cumprimento-a e pergunto se posso sentar-me com ela à mesa, pois não há outros lugares vagos. Ela concorda e, enquanto lanchamos, vamos relembrando nossos tempos na escola.
Quando fica sabendo que sou advogada, começa logo a me relatar uma ação que sua sobrinha ajuizou. Conta que essa sobrinha perdeu o pai quando tinha oito anos e, três anos depois, a mãe, que ficara viúva muito jovem e com dois filhos para criar, casara-se novamente. Ela era uma menina tímida e doce, mesmo quando atingiu a adolescência. Falava baixinho e, diferentemente das meninas de sua idade, que apregoavam aos quatro ventos os problemas em casa, mantinha-se reservada quanto à própria vida.
Hoje, essa sobrinha tem 31 anos e está passando por acompanhamento psicológico desde que se casou, dois anos atrás. Ao passar a sofrer crises de pânico e dores no peito, buscou a assistência de uma psicóloga. Durante a terapia, tomou consciência da causa desses problemas. As lembranças dolorosas de sua adolescência vieram com tal intensidade que não conseguiu mais manter guardado seu segredo.
Pela primeira vez, conseguiu externar a dor que a dilacerava desde os doze anos. Relatou as atitudes do padrasto, que passaram, depois de ela ter sua primeira menstruação, da carinhosa atenção a abraços cada vez mais apertados, a beijos demorados e molhados no rosto, principalmente quando a mãe dela não estava perto. Não viu maldade nisso, até que ele tocou os seios dela. Retraiu-se e, daí em diante, evitou estar sozinha com ele. Não contou a ninguém o que estava acontecendo.
Um dia, a mãe teve de viajar para acompanhar o outro filho em uma consulta médica. Era feriado na cidade, e a sobrinha, que passava as manhãs na escola, ficou em casa nesse dia. De certa forma, ficou tranquila, pois o padrasto havia dito à mãe dela que teria de trabalhar mesmo sendo dia de folga, pois todos os contratados para a obra na qual era pedreiro tinham sido convocados a adiantar o serviço.
De fato, ele saiu pela manhã, mas, cerca de meia hora depois, voltou e ainda a encontrou dormindo. Foi aí que ele cometeu o estupro, ato que se repetiria ao longo de três tormentosos anos, sob a ameaça de que, se contasse algo, daria um fim à mãe e ao irmão dela. Em seu coração adolescente, disputavam espaço culpa – sentia que estava traindo a mãe –, vergonha e medo. Fazia tudo para que a mãe não percebesse nada. Não queria trazer tristeza a ela.
Um dia, a avó dela sofreu um derrame. Como passou a necessitar de companhia constante, propôs que ela, neta, fosse morar com ela. Ela aceitou imediatamente. Seria sua oportunidade de se libertar do suplício que era ter seu corpo violado por aquele homem asqueroso. Depois disso, ela nunca mais voltou a viver com a mãe, que faleceu logo depois que se casou.
Talvez a dor do luto tenha sido o gatilho das suas crises de pânico e das dores no peito, que a faziam ser internada. Não sabe precisar isso. O que importa é que, ao tomar consciência do mal que lhe tinha sido feito, e já não tendo de se preocupar em não ferir a mãe, agora falecida, contou tudo para o marido e para o irmão dela. Eles apoiaram sua decisão de denunciar o padrasto. Embora já se tivessem passado quase 20 anos do cometimento do crime, ainda seria possível puni-lo. Comento: “ Sim, em estupro de vulnerável, não se considera a data em que o fato ocorreu, mas, sim, a data em que a vítima completa 18 anos.” Continuando, ela me conta que o padrasto da sobrinha foi condenado e preso.
Tendo a condenação como prova, a sobrinha ajuizou também uma ação requerendo que ele fosse condenado a lhe pagar indenização por dano moral, mas o primeiro Juízo negou. Fundamentou-se no fato de que ela teria de ter pedido a indenização no máximo três anos após seu aniversário de 18 anos. O advogado dela recorreu ao Tribunal de Justiça, que decidiu pela condenação dele.
O Tribunal levou em conta a complexidade do caso, que envolvia violência sexual contra uma adolescente. Entendeu que não seria razoável, diante das circunstâncias vividas pela sobrinha dela, exigir que, aos 21 anos, ela já tivesse plena consciência de todo o mal que lhe fora causado. Somente aos 30 anos, vieram à tona os problemas psicológicos decorrentes dos abusos sexuais que ela sofreu. No momento em que ela tomou consciência da extensão do mal, é que pôde acionar a Justiça pedindo reparação, por isso o Tribunal determinou que essa deveria ser a data inicial da contagem do tempo para ela requerer seu direito.
Fico ali ainda um tempo, depois que ela sai. Que história triste! Infelizmente, não é incomum. Agressores de crianças e adolescentes estão por aí – a maioria dentro do lar –, deixando seu legado de dor. Que sejam denunciados e punidos – é o que se espera.